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‘Vejo a pipa como uma liberdade’

Por: Isabela Alves

“Eu vejo a pipa como uma liberdade”, filosofa Hamilton Souza Silva, 51, artesão e proprietário da loja Miltão Pipas. “A partir do momento que você está soltando a pipa, você não consegue enxergar os problemas. Você só enxerga aquela brincadeira de momento.”

Morador do Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo, ele remete à pipa as melhores memórias afetivas da infância. Ao lado do irmão mais velho, ele produzia os próprios “papagaios” desde pequeno e soltava em terrenos baldios do Jardim Eliana e Parque Residencial Cocaia.

“Ele fazia a pipa e eu a rabiola, ou vice e versa. Fazíamos todas as armações de noite e depois era só encapar tudo”, lembra. “Nunca gostamos de comprar a pipa pronta, porque não vinha do jeito que a gente queria, então nada melhor do que a gente mesmo fazer.”

O que começou como uma brincadeira no telhado de casa, logo tomou uma proporção maior. Com o passar do tempo, os vizinhos começaram a reparar nos modelos produzidos por Hamilton e vieram pedir exemplares.

Hamilton e a esposa, Claudineia, na loja Miltão Pipas @Isabela Alves/Agência Mural

Em uma ocasião, ele vendeu 20 pipas por R$ 0,50, terminou o dia com R$ 10 no bolso e logo pensou: “Isso aqui gira”. A loja foi inaugurada em 2013 em um espaço pequeno, de 5 x 5 metros na garagem de casa, lugar esse que dividia com a esposa Claudineia Martins dos Santos Silva, 49, que tinha um comércio de roupas na época.

Com o crescimento das vendas, o espaço para que Hamilton trabalhasse dentro de casa aumentou gradualmente: primeiro foi a garagem inteira, depois o quintal dos fundos e agora se expandiu para a casa de cima.

Lá são produzidas oito tipos de pipas de diferentes tamanhos e formatos que vão desde a pequena, chamada popularmente de caçulinha, até a pipa gigante. Os diâmetros variam entre 45 centímetros e 1 metro.

A mais procurada pelos clientes recorrentes, que são crianças na faixa dos 10 a 12 anos, é a pequena que possui 45 cm de diâmetro com travessas de 33 cm x 30 cm.

O pico de vendas ocorre durante os meses de férias, em julho, dezembro e janeiro. “De julho a agosto, eu fico na parte de vendas só atendendo a molecada e depois dou uma parada só para me preparar de novo para a temporada de dezembro, que é a maior”, diz.

O artesão ao lado de três funcionários produzem 500 armações por dia. Cotidianamente, são vendidos 20 pacotes, que contém 25 pipas finalizadas.

Até que a pipa colorida chegue a mão do cliente, ela passa por quatro processos: a montagem das varetas (chamada pelos pipeiros de “cruzeta”), a passada de linha na armação com a ajuda do gabarito, a “chapagem” da armação na seda e a colagem para a finalização.

Maicon Andrade da Costa, 20, trabalha com Hamilton há dois anos nessa produção. Para ele, não há nada mais recompensador do que ver o sorriso no rosto das crianças ao soltar a pipa.

Nestes anos de trabalho, o momento que mais o emocionou foi quando a equipe confeccionou pipas para o desfile Fluxo Milenar, da marca Mile Lab, no São Paulo Fashion Week em 2021. Por conta daquele momento, tanto Hamilton quanto os funcionários, começaram a se enxergar como artesãos.

“O que poucas pessoas dão valor, em outros lugares tem um valor imenso. Uma pipa não é simplesmente uma pipa. Caramba, é uma arte”

Maicon Andrade da Costa, 20

Apesar do reconhecimento ao trabalho, ainda há muitos preconceitos que precisam ser quebrados em relação ao brinquedo, já que ele continua sendo associado à marginalidade por muitos pais.

“A pipa é uma brincadeira que não faz mal algum. Claro que a criança também precisa ser incentivada a estudar, mas se os pais tivessem a noção do quão boa a pipa é para uma criança, jamais iriam impedir isso”, declara.

O artesão alerta que um dos perigos que deixam os responsáveis aflitos é o uso da linha chilena. As linhas, fabricadas com óxido de alumínio ou óxido de carbeto, são mais duras para facilitar o “relo”, competição de cortar pipas entre os jovens.

“O gostoso da pipa é o ‘relo’, porque você conta quantas cortou por dia, mas eu sou contra a linha chilena”, enfatiza. “Um dia tomei três ‘relos’ seguidos, eu falei ‘que cerol é esse que esse moleque tá usando?’. Depois que consegui cortar, peguei na linha e vi o quanto é rígida”, questiona.

A disputa perigosa pode causar graves acidentes. Por conta disso, o uso de materiais cortantes nas linhas de pipas, a conhecida mistura entre cola e vidro, passou a ser proibida em São Paulo. O Projeto de Lei 765/2016 proíbe o uso, posse, fabricação e a comercialização da mistura.

Caso a lei seja descumprida, a pessoa responsabilizada deverá pagar uma multa equivalente a 50 Ufesps, que na cotação atual é aproximadamente R$ 1.326,50. No caso em que um estabelecimento descumprir a lei, a multa pode chegar a R$ 132 mil.

Apesar disso, Hamilton não enxerga na prática como esse problema pode ser controlado. “Estou sempre explicando para a molecada sobre os problemas com a linha chilena. Já perdi muito por causa disso, mas vou continuar com a minha filosofia.”

Ele atribui o sucesso das vendas ao fato de sempre produzir o produto ao gosto da molecada. Uma situação curiosa que o chamou a atenção foi durante a pandemia de Covid-19, pois foi neste momento em que as vendas explodiram ao ponto de faltar material nas próprias fábricas e distribuidoras.

Por isso, os pipeiros paulistas se uniram para compartilhar materiais e as trocas chegaram a ocorrer até com gente de fora do estado.

“O pensamento é de que na pandemia ninguém iria soltar pipa e que as crianças ficariam dentro de casa, mas foi totalmente o contrário.

Hamilton Souza

Para o artesão, o mais especial das pipas é que ele consegue conversar com as crianças de igual para igual. Já com os adultos, o brinquedo os recorda da infância que foi esquecida.

“Clientes que compravam comigo quando eram crianças, agora levam os filhos para ver a loja. A meninada chega lá e fica abismada. Isso é muito da hora.”

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