“Quando vou para a água, não estou sozinha”, diz Laís Guimarães, 27, velejadora, educadora ambiental e ativista social. Moradora do Jardim Gaivotas, no extremo sul de São Paulo, ela faz parte da Roda de Afeto, Arte e Cultura, iniciativa que busca capacitar mulheres, em sua maioria negras e periféricas, a aprender a usar o barco a vela e desbravar as águas da Represa Billings.
“É para tentar lutar como as minhas ancestrais fizeram”, conta ela. “Ocupar a represa ao lado de outras mulheres negras é um ato revolucionário: estamos acessando uma parada que não foi pensada para nós”, completa.
Mesmo que a represa seja um dos maiores e mais importantes reservatórios de São Paulo, muitos moradores da região não conhecem a história desse espaço e a potência em acessar essa região. Ao promover a vivência náutica, a ação estimula a prática esportiva e a identidade local.
Por meio do trabalho de base, Laís busca desmistificar as incertezas e levar cada vez mais pessoas de todas as idades para a água.
‘A gente é ribeirinho. Antigamente, muitas famílias se alimentavam com os peixes e hoje está se perdendo isso, porque os pescadores estão sendo retirados das margens’
Laís Guimarães, ativista social moradora do Jardim Gaivotas
Na terceira reportagem do especial “Periferias e Justiça Climática : alternativas ambientais para os nossos”, vamos conhecer a história da ativista que cresceu às margens da represa e busca democratizar esse espaço para outras pessoas das periferias.
O início na vela e o ativismo social
Laís é apaixonada pelas águas desde menina. Quando tinha 7 anos, conheceu a Casinha, espaço que abriga diversos coletivos do Grajaú. Atualmente, além da roda de afeto, também ocupam o espaço o Imargem, Navegando nas Artes e O que cabe no meu prato?.
Nesse local, ela conheceu o barco a vela e começou a participar de diversas atividades. Em uma delas, de virar e desvirar o barco da represa, seu tio a viu dentro da água. “Ela quase morreu”, alertou o tio aos pais da menina.
“Se você pega o vento muito forte e não tiver muita habilidade, o barco vira. Então você tem que aprender a técnica”, explica Laís.
Depois desse dia, os pais dela a proibiram de voltar a navegar. Com o desligamento de uma de suas maiores paixões, ela seguiu sentindo muita falta de estar na água. Ao chegar na vida adulta e passando por diversos trabalhos, sentia que ali não era o seu lugar.
Em 2018, passou por um processo de depressão profunda e conheceu a terapia ocupacional. Depois de muitas consultas, a terapeuta a tirou do consultório e a levou para uma roda com cerca de 30 mulheres no CEU Navegantes, no bairro do Cantinho do Céu. A Roda de Afeto teve início naquele ano, em 8 de março.
Após três anos de tratamento, Laís compreendeu que o que faltava era navegar. A terapeuta a presenteou com seu primeiro barco com a ideia de que começasse as atividades com as mulheres. A embarcação veio batizada com o nome “Vitória” e, em paralelo, Laís também começou a trabalhar com essas mulheres na área da saúde.
“Não é ruim estar em um trabalho de domingo a domingo, que é a situação da maioria na quebrada, mas a gente não tem qualidade de vida”, avalia Laís sobre a atuação da Roda de Afeto, Arte e Cultura.
“As mulheres que estão na roda vieram do Nordeste, se casaram muito cedo e não tiveram muitas oportunidades. Elas vivem processos cheios e atravessamentos. É uma honra estar com elas”, reflete.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, Laís, que também é pertencente a Rede do Fundão do Graja, uniu forças para a doação de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social. Por semana, eram doadas cerca de mil cestas em média.
A luta de Laís foi registrada no curta-metragem “A Represa É o Meu Quintal”, que estreou na 25° Mostra de Cinema de Tiradentes. Além de abordar o cenário pós-pandêmico nas periferias, o documentário falou sobre o enfrentamento às mudanças climáticas e o racismo ambiental.
Para ir a exibição, foi feita uma vaquinha online para bancar as despesas da ativista junto a equipe, mas o evento acabou sendo cancelado com o retorno do vírus. Foram arrecadados R$ 120 mil e esse valor foi revertido em diversas atividades para a roda de mulheres.
Combate ao racismo ambiental
Pensando em formar mais mulheres velejadoras, em especial as negras e periféricas, a ativista promoveu a primeira imersão da Vitória na Água no dia 30 de setembro. A iniciativa reuniu mais de 30 mulheres de todo o país.
“O barco a vela traz adrenalina e você sente que é protagonista da sua história. Quanto mais momentos assim elas tiverem, mais autonomia vão criar”, conta Gracielly Guedes, 27, produtora cultural e artística, e uma das idealizadoras do evento.
A represa Billings é a maior em área urbana na América Latina. Foi construída pelo engenheiro estadunidense Asa White Kenney Billings e teve as obras concluídas em 1925. Para isso, parte da Mata Atlântica foi desmatada.
Essas interferências na natureza moldaram a maneira que ela é enxergada até os dias atuais e por isso ocupar a represa é um ato de resistência, afirma as organizadoras da Roda, já que ela havia sido pensada apenas para gerar energia para São Paulo, São Bernardo do Campo e o Grande ABC.
Gracielly e Laís também chamam atenção pelo fato de que a represa Billings não é acessada pela população, por estar em um local marginalizado da cidade de São Paulo.
A represa Guarapiranga, por exemplo, que também está na zona sul, é a que concentra mais clubes e recebe mais investimentos, porque, historicamente, foi ocupada desde o início por pessoas da elite paulistana.
‘São Paulo foi construída na base de onde a galera escolheu ocupar, então a nossa cidade é vendida há muito tempo’
“Todos os clubes que são muito conceituados, as pessoas negras estão lá como trabalhadores e não frequentadores. Foram inúmeras vezes que eu me senti sozinha nesses espaços”, ressalta. Para ela é preciso mudar um mundo onde “os barcos têm mais valores do que as pessoas.”
*A série “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos” foi produzida com apoio do ICFJ (International Center for Journalists).