Quarenta segundos. Esse é o tempo que Gilson dos Santos, 43, tem para vender seu produto. Antes que os carros arranquem no semáforo verde, ele tem que convencê-los a comprar água, fazer o troco e, por vezes, posar para fotos na região do Metrô Itaquera, na zona leste de São Paulo.
Para se diferenciar e driblar o preconceito, Gilson apostou no traje. Um smoking preto, camisa social, gravata borboleta, óculos e um microfone conectado a uma caixinha de som presa à cintura, que amplia a voz por cerca de 10 metros.
“Logo que comecei eu vinha de calça jeans e camiseta. As pessoas subiam os vidros dos carros na minha cara, por preconceito, ou medo”, afirma. “Fiz R$ 30 em um dia. Quando tive a ideia de vir com essa roupa e também servir como um garçom, tive a surpresa, faturei R$ 180, mas não é sempre que ganho isso”.
Ele ainda é pastor de uma igreja que fundou em A.E Carvalho, bairro da zona leste, onde mora. Em um dia ensolarado o termômetro da rua marca 26 graus e ajuda a liberar as garrafas geladas, guardadas em um balde de gelo.
Gilson fazia parte dos 11,9% de desempregados no Brasil (de acordo com últimos dados divulgados do IBGE), quando perdeu a vaga de limpador de vidros de edifícios, há três anos. Decidiu não procurar um novo cargo na área e iniciou a atividade de venda no farol por conta própria.
Ele já fez um curso para trabalhar como garçom e, no último emprego formal, recebia o salário de R$ 1.800 mensais. Hoje, consegue até R$ 3 mil.
“Se for para receber pouco como recebia registrado, eu prefiro ficar desempregado. Faço meus bicos aqui no farol e às vezes de garçom também. Desde que comecei aqui nunca mais passamos dificuldade em casa. A água matou minha sede de todas as formas”, comenta.
Debaixo do sol forte, ele se preocupa em andar como se desfilasse em uma festa de gala em meio aos carros, motos e ônibus, vendendo cada garrafa de água por R$ 2. “Precisa ter carisma e técnicas de venda. É preciso saber lidar com o público e ter higiene, minhas mãos sempre estão limpas e com unhas aparadas”.
Gilson mora com a mulher e a filha de 12 anos. Poucas horas depois que ele inicia o trabalho, por volta das 10h, ela passa e pede dinheiro para comprar lanche no curso. Ele enfia a mão no bolso e entrega as poucas notas que havia ganhado para a menina que ia para um curso técnico de telemarketing.
O dinheiro conseguido com as vendas de água também está estimulando a abertura de um negócio. “Estou montando um mercadinho lá perto de casa [A.E Carvalho] e também já consegui comprar um carro, tudo com dinheiro da venda de água aqui no farol”, diz.
“Mas não é fácil, é preciso ter personalidade e aguentar ficar debaixo do sol com essa roupa também. Chego à noite em casa com a cabeça estourando muitos dias”.
Ele segue rigorosamente o horário das 10h às 18h, de domingo a domingo. As folgas são determinadas pela previsão do tempo, apenas em dias de chuva.
“Vender água qualquer um vende. O que precisa ter é o diferencial e o meu é o marketing. A cada três dias troco o estilo da vestimenta, vario entre smoking, terno, gravata e às vezes um avental de garçom”, explica.
Ao mesmo tempo, ele já enfrentou problemas com a fiscalização de ambulantes que trabalham sem registro, conhecida como “o rapa”. “Eles disseram que iriam levar tudo, minha vontade foi de chorar mesmo. Só não chorei porque seria muita humilhação. Mas eles [agentes da fiscalização] viram meu estado e me liberaram com a mercadoria”, diz constrangido.
Desse dia em diante, ele evita ir ao semáforo em dias de jogos na Arena do Corinthians, ocasiões em que esse tipo de fiscalização aumenta.
Gilson é natural de Recife (PE) e antes de encarar o semáforo, diz ter passado por dificuldades com drogas. “Tirando crack, eu usei tudo que você possa imaginar e a pior de todas foi o álcool”.
Diz ter superado o problema com ajuda da igreja que frequentava. Aos 18 anos, decidiu vir para São Paulo.
“Lá de casa, sempre fui o que mais gostou de desafios. Vim para cá sozinho, sem emprego e sem família. Vendi pano de chão na rua e trabalhei em obra de construções. Foi aqui que cresci, me casei e construí minha família”.
Em São Paulo, o recifense também retomou os estudos que havia abandonado aos 17 anos. “Eu tinha muita dificuldade, reprovava em muitas matérias, mas sei que educação é importante, então voltei para escola aos 36”.
Com o ensino médio completo, ele prestou o vestibular para estudar em diferentes universidades privadas. Passou em todas, nos cursos de jornalismo, gestão de segurança privada e direito. Mas, por questões financeiras, nunca pode nem sequer fazer a matricula nos cursos.
A porta para que Gilson entrasse no ensino superior foi aberta por uma faculdade que lhe ofereceu uma bolsa integral em um curso de teologia. Formado, ele fundou a Igreja Apostólica Plenitude de Cristo. “O pessoal às vezes me conhece no farol e depois vai na igreja”, afirma.
“Meu sonho é poder voltar a estudar gestão de segurança, mas isso só quando tiver condição financeira. Trabalhar aqui no farol é igual a água do mar, tem hora que vem arrebenta, mas tem hora que é muito devagar”, desabafa.
Giacomo Vicenzo é correspondente de Cidade Tiradentes
giacomovicenzo@agenciamural.org.br