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Vovó Pretinha: a vida da mulher que me ensinou a escutar as ruas de Heliópolis

Alice com a neta Isabela do Carmo na infância

Por: Isabela do Carmo

Ainda tenho nítida a cena da última vez em que vi minha avó. Não me lembro da data exata, mas foi cerca de uma semana antes de ela partir em 2017. Estávamos nos despedindo em frente à porta da casa dela em Heliópolis, na zona sul de São Paulo.

Eu já me afastava, descendo os degraus da escada, quando parei, virei, e voltei para dar mais um abraço na “vovó Pretinha”, como eu, minha mãe e minha irmã carinhosamente a chamávamos.

Desde aquele dia, o sentimento que me acompanha é só saudade – densa, silenciosa, mas também cheia de memórias vivas.

Alice com a neta Isabela do Carmo na infância @Arquivo pessoal/Divulgação

Vovó Pretinha testemunhou de perto momentos marcantes da história de Heliópolis: o incêndio de 1996, que destruiu os antigos esqueletos de prédios bem em frente à sua casa, e o grande incêndio na região da Ilha, em 2013.

A chegada das moradias sociais, quando, enfim, pôde realizar o sonho de viver sob um teto planejado, em uma casa com alicerces de concreto e o mínimo de dignidade.

Antes de chegar na maior favela de São Paulo, Dona Alice era lavadeira de roupas e trabalhava duro na roça, sob o sol e o silêncio da pequena Abatiá, cidade com pouco mais de sete mil habitantes no interior do Paraná.

Ainda moça, aos 17 anos, se casou com meu avô, Alcindo. Não sabia ler nem escrever, mas conhecia bem as lições da vida: aquelas aprendidas no esforço diário, com as mãos calejadas e a força que vem de quem não teve escolha. Juntos, tiveram oito filhos, mas um deles morreu ainda pequeno, aos quatro anos.

Alice com os sete filhos @Arquivo pessoal/Divulgação

Aos trinta e poucos, ela deixou Abatiá e mudou-se com a família para Mauá, na região metropolitana de São Paulo, cidade natal da família do meu avô. Foi lá que nasceu minha mãe, Elaine Cristina Serapião. Pouco tempo depois, meu avô faleceu, e minha avó se viu viúva: uma mulher negra, pobre e sozinha, responsável por sete filhos.

Nos anos 1980, enquanto o Brasil saía da ditadura e prometia democracia e esperança, ela tomou uma decisão corajosa: mudou-se para Heliópolis. Com a ajuda de familiares, comprou um pequeno barraco de madeira.

Foi ali, entre paredes finas e ruas de barro, que criou seus filhos. Dona Alice também ajudou a construir a memória viva de Heliópolis. Chegou à quebrada para trabalhar na área da limpeza do Hospital Heliópolis. Que, até então, era a grande promessa de dignidade em saúde para a população favelada.

Por trabalhar durante a madrugada no hospital, minha avó passava pouco tempo em casa com os filhos, como minha mãe costuma lembrar. Mas isso nunca foi sinal de ausência de afeto.

‘Quando ela chegava de manhã, depois do plantão, sempre me entregava um biscoito, um pãozinho, algum doce… era a forma dela de mostrar que estava ali, que pensava na gente’

Elaine Cristina, filha de Alice

E falando em infância, ela também guarda com carinho as lembranças dos dias vividos na quebrada, quando as ruas eram território livre para brincar, correr e criar.

Elaine Cristina com a mãe que criou os sete filhos sozinha, após a morte do marido @Arquivo pessoal/Divulgação

Hoje, mesmo diante de um bairro transformado, minha mãe ainda olha para a rua com os mesmos olhos de menina. E, sob o olhar dela, eu também consigo enxergar um traço daquela liberdade que Dona Alice tanto defendia.

Bença, vó

Era assim que eu cumprimentava Dona Alice toda vez que chegava na casa dela. Eu, que nem religiosa era, repetia aquelas palavras como quem faz um ritual de respeito. Era mais do que um costume, era um reconhecimento silencioso de quem veio antes, de quem lutou para que a gente pudesse estar aqui.

Dona Alice foi muitas coisas: lavadeira, trabalhadora da saúde, mãe solo, migrante, moradora de favela. Mas acima de tudo, ela foi construtora de território. Fez da própria história uma forma de ocupação legítima da cidade. Mesmo que o Estado, tantas vezes, tenha insistido em negar esse pertencimento.

Há quem diga que 74 anos é tempo suficiente para viver uma vida plena. Que é tempo de sobra para ter aproveitado, aprendido, amado. Mas eu discordo. Setenta e quatro anos ainda me parece cedo demais, tão cedo quanto os 20, os 30.

Última foto da Isabela com a avó Alice, em dezembro de 2016 @Arquivo pessoal/Divulgação

E, embora a causa oficial tenha sido um AVC hemorrágico (Acidente Vascular Cerebral), guardo comigo uma outra certeza, nascida da observação cotidiana: se Dona Alice Serapião tivesse tido acesso contínuo e digno à saúde, à cultura e à educação, talvez ainda estivesse aqui, preparando seu tradicional frango caipira de todo domingo.

‘O dinheiro não é tudo, mas faz muita diferença na saúde e na vida. Se minha mãe tivesse tido mais acesso a ele na juventude, poderia ter vivido com melhores condições e mais qualidade de vida ao longo dos anos

Elza, primogênita de Alice

A morte dela, como tantas outras nas bordas da cidade, não foi apenas natural. Segundo o Mapa da Desigualdade de São Paulo 2024, produzido pela Rede Nossa São Paulo, moradores das periferias da cidade vivem, em média, 24 anos a menos do que quem vive em áreas mais ricas, como o Alto de Pinheiros, bairro nobre da zona oeste da capital paulista.

Vinte e quatro anos. Uma vida inteira encurtada por ausências: de postos de saúde decentes, de transporte eficiente, de espaços culturais, de saneamento básico, de ar puro, de tempo livre e seguro para simplesmente existir.

Que cidade é essa, onde o CEP define o tempo de vida de alguém?

O direito à cidade não é só ter onde morar. É poder criar raízes, caminhar sem medo, ver os filhos crescerem em liberdade. É saber que sua história tem lugar – e memória – nas esquinas, nos corredores, nos nomes e nas vozes que ali resistem.

Se hoje eu sei para onde voltar, é porque antes foi Dona Alice quem construiu essas memórias coletivas. Vó, hoje sua neta é jornalista, mas foi com você que aprendi a escutar as ruas. Sua pele, parecida com a minha, e a pinta no rosto que também carrego me lembram de onde venho. Me lembram que tenho raízes.

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