Correspondente da Agência Mural narra dificuldades durante a gravidez da esposa, que teve negado o pedido de fazer uma cesárea durante 16 horas
Léu Britto/Agência Mural
Por: Léu Britto
Crônica
Publicado em 12.03.2020 | 16:01 | Alterado em 22.11.2021 | 17:03
Correspondente da Agência Mural narra dificuldades durante a gravidez da esposa, que teve negado o pedido de fazer uma cesárea durante 16 horas
Tempo de leitura: 5 min(s)São Paulo, 24 de Janeiro de 2020. Eu e minha esposa chegamos a recepção do Hospital Municipal do M´Boi Mirim, na zona sul de São Paulo. São 10h. Michele completa nesse dia 40 semanas de gestação de uma gravidez de alto risco.
Ela espera fazer uma cesárea por segurança, pois tem receio de que o nascimento do seu quinto filho coloque ela e a criança em risco.
Esse desejo só foi realizado após 16 horas de trabalho de parto (desnecessários) e a troca do plantão do dia 24 para o 25. Quando o relógio marcou 00h50, nasceu Leonardo Monteiro Brito, com 4.5 kg e 54 cm. Depois disso, recebemos um pedido de desculpa do médico que realizou a cesárea.
“Mãe, você tinha razão”, disse. “Seu filho só poderia ter vindo ao mundo via uma cesariana, do contrário ele poderia ter morrido no parto normal. Em nome da equipe que fez sua cirurgia, nós lhe pedimos desculpa”, disse o profissional.
Infelizmente, ele não foi o primeiro a atender minha esposa naquele dia.
O dia começou às 07h59, quando a bolsa estourou e o líquido amniótico da minha esposa escorreu. “Chegou a hora, amor”. Ela me acorda e diz para eu preparar o café da manhã e chamar o carro pelo aplicativo em direção hospital do M´Boi Mirim, em seguida.
Ao darmos entrada na triagem do Centro de Parto Humanizado, a primeira médica que lhe atende não pensa duas vezes para interná-la. Michele explica para a médica que gostaria de exigir o parto cesárea, e cita a nova Lei 17.137 de 23 de agosto de 2019.
“Você ainda tem chances de ter parto normal, então vamos respeitar seu corpo e o momento do bebê”, rebateu a médica. “Não tendo outro jeito, partimos para cirurgia”, disse sem dar muitas esperanças de que o direito seria garantido.
No momento que minha esposa mais precisou da humanização da “profissional”, ela rejeitou a vontade de Michele mesmo com o quadro de dor agravado.
A exigência desse direito foi pelo quadro de gestação de alto risco. O feto estava em situação transversal (isso quer dizer: com a cabeça para baixo, mas desencaixado da bacia materna e atravessado na barriga) – inviabilizando o parto normal.
Além disso, seria o quinto parto de Michele. Antes, ela passou por quatro gravidezes de parto normal – sendo dois naturais (sem necessidade de ajuda externa) e dois a fórceps (quando há pontos cirúrgicos). Logo, ela sabia (tanto pelo ultrassom e pelo tamanho de sua barriga) que o quinto filho que seria enorme. A tentativa de mais um parto natural traria consequências para ela e para o feto.
Pelo trauma dos dois últimos partos fórceps – o último há 12 anos – ela solicitou experimentar a cirurgia cesárea – imaginando que diminuiria o trauma psicológico de mais uma violência obstétrica.
VÁRIOS HOSPITAIS
Antes de chegar ao M’Boi Mirim, passamos por outros quatro hospitais. Dias antes do nascimento, no início da 37ª semana gestacional, nós demos entrada no Amparo Maternal, região da Vila Mariana, um dos hospitais indicados por sua médica do pré-natal, da UBS Vila das Belezas, zona sul.
Para a surpresa de Michele, este lugar não oferece UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para casos de gravidez de alto risco.
Ainda no Amparo, recebemos uma indicação, da enfermeira de plantão, que um hospital bom para partos de alto risco na região é o Hospital Municipal da Vila Santa Catarina, zona sul. Decidimos partir para lá no dia seguinte.
Porém, a frustração veio logo na triagem. “Senhora, infelizmente o hospital está lotado e não dará entrada em nossa unidade, pois estamos sem leitos e você não está em trabalho de parto ativo”, disse. “Mesmo que tivéssemos leito, a senhora não ficaria, pois seus hospitais de referência não são aqui”.
Ela diz que dessa forma provavelmente seria solicitado que fosse removida até o hospital da região onde ela vive. “O jeito será ir até o Regional Sul para eu conseguir minha cesárea”, disse Michele.
O local é o principal hospital de referência, mas com fama de ser o mais frágil no acolhimento de novos pacientes para internação. Infelizmente, os rumores se confirmaram.
Fizemos o procedimento padrão para iniciar a avaliação de risco da gestação. Porém, mesmo sendo madrugada, a resposta negativa veio da enfermeira de plantão.
“Estamos em reforma geral no prédio, com mais de 200 leitos indisponíveis, você não poderá ser internada aqui”.
A solução foi o Hospital do M’Boi Mirim, onde passamos o dia inteiro na véspera do aniversário de São Paulo com Michele tendo seus pedidos negados.
RETA FINAL
O relógio digital marca 22h no quarto individual no qual estamos alojados aguardando a médica de plantão. No primeiro contato com minha esposa, ela deixou bem claro quem manda na gestação.
“Michele, eu sei dos seus direitos ao seu parto cesárea, mas você não apresenta as características necessárias ainda para realizar a cirurgia”, enfatizou.
“Não vou colocar em risco meus 6 anos de graduação, mais 4 de residência em hospital, só porque você quer uma cesárea. Pois se der algo errado, é o meu que vai estar na reta”, disse a médica que nos atendia, antes de sair da sala e não dar mais ouvidos às súplicas de dores da minha esposa.
A médica indicou para as enfermeiras de plantão que apliquem um remédio para ministrar a dor. Porém, ela desrespeitou o corpo da Michele e do nosso filho. Foi aplicada uma dose de ocitocina sintética (remédio indicado para acelerar as contrações do trabalho de parto). O que só piorou a situação.
O desfecho para o nascimento de Léo filho se deu quando ocorreu a troca de plantão dos médicos por volta da meia noite. O novo médico ao adentrar ao quarto tentou se inteirar das condições atuais da minha esposa. Na tentativa de tentar amenizar a dor dela, ele disse: “Mãezinha você enganou a nós todos, pois ouvi dizer que você teve quatro filhos normais antes, o que enroscou nesse?”.
Mas assim que o médico observou a bolsa de soro e o medicamento prescrito que estava sendo aplicado na veia dela, o humor dele mudou. Logo, ele exigiu que preparassem imediatamente o centro cirúrgico.
Em 20 minutos, Michele estava anestesiada e pronta para receber o quinto filho por meio de uma cesárea. Quando deu 00h50, o choro de Leonardo Monteiro Brito preenchia a sala.
O nascimento ocorreu sem complicações. Passamos três dias em repouso na maternidade e tivemos alta no dia 27. O susto da violência obstétrica ficou no passado. Estamos felizes que o pior não aconteceu, mas torcendo por mais sensibilidade de quem cuida das mães nessa cidade.
Em reportagem da Agência Pública sobre a violência obstetrícia cometida em mulheres negras no Brasil, Michele Monteiro relatou a situação do parto que viveu em São Paulo. A secretaria municipal de Saúde afirmou à reportagem que seguiu “critérios clínicos, maternos e fetais, com o objetivo de proteger a gestante e o bebê.” Confira a reportagem completa da Agência Pública sobre o tema
Fotojornalista e videomaker. Transitar pelos becos e vielas do mundo amando cada um do seu jeito e maneira de viver. Cofundador do DiCampana Foto Coletivo. Correspondente do Jardim Monte Azul desde 2010.
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