No último sábado (18), o jornal Folha de S. Paulo publicou o caderno “Cidades e territórios” com reportagens, artigos e uma pesquisa sobre a representação que as pessoas têm das diferentes regiões de São Paulo, realizada pelo Instituto Data Folha em abril.
Dentre os resultados da pesquisa, 46% dos entrevistados associam pobreza e violência aos bairros periféricos do município; 70% considera que essas regiões deveriam receber mais investimentos em infraestrutura que as demais.
E, apesar de 56% classificarem as pessoas que habitam nessas áreas como violentas e perigosas, e 33% alegarem que elas possuem comportamento mal educado e grosseiro, 79% acreditam que os moradores das periferias são mais solidários.
A Agência Mural entrevistou Tiaraju D’Andrea Pablo, morador de Itaquera, doutor em Sociologia pela USP e autor da tese “A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo”, que comentou os principais resultados da pesquisa.
Agência Mural: Por que você acha que a violência e pobreza ainda permanecem ligadas à periferia?
Tiaraju D’Andrea Pablo: Nos anos 90, os próprios moradores da periferia enunciavam a palavra periferia como um termo crítico à sociedade que a invisibilizava. Dizer periferia era falar a verdade, a realidade que a sociedade ocultava ou tentava esconder. Esse mostrar a realidade ao enunciar periferia era apresentar a violência e a pobreza desses territórios como forma de denúncia social.
Nessa mesma operação de apresentação do problema, se realizava uma crítica à sociedade, e um convite: “olhem pra gente”. A tentativa de superação de violência e pobreza começa a ocorrer pela ação dos próprios moradores da periferia, tendo nas atividades artísticas desses locais um de seus principais eixos articulatórios, somados à mudança de narrativa operada pelos próprios moradores, que tentam desconstruir os discursos estigmatizantes.
De fato, o morador da periferia sabe que seu território não se constitui apenas de violência e pobreza. Quando ressalta essas características, o morador da periferia está realizando uma denúncia. Esse morador sabe das potencialidades do periférico, de sua capacidade de estudo e de sua criatividade artística. Sabe da existência de inúmeras organizações locais. Do cotidiano de idas e vindas no trajeto pela cidade. Das atividades de trabalho. Da solidariedade que permeia as relações e de um sentimento de pertença que perpassa situações e vivências comuns.
Calcado em uma representação equivocada, esse discurso redutor avaliza preconceitos bem como uma posição simbólica supostamente superior daquele que não mora na periferia, ao afirmar que violência e pobreza somente existe em outros territórios que não o seu.
AM: Acha que de fato a violência é predominante na periferia?
Tiaraju: Não. A periferia é composta por uma multiplicidade de relações e situações. A violência é uma delas. Em maior ou menor grau, dependendo do local ou do momento. No entanto, é fato que as representações da violência da periferia distorcem o que de fato ocorre. Este processo de distorção (que também se estende ao todo da sociedade) é o que justifica o discurso securitário e as políticas de repressão. Não há nada mais eficaz do ponto de vista de uma sociedade do controle do que manter as pessoas acuadas e com medo. Insistir no discurso de que a periferia é violenta é justificar a presença das forças de segurança e da repressão sobre essa mesma periferia.
AM: Você acha que os resultados refletem a realidade ou o preconceito?
Tiaraju: Refletem um misto de desconhecimento com preconceito. Desconhecimento que se revela, por exemplo, nos dados que demonstram que Capão Redondo, Guaianases e Itaquera são os distritos mais reconhecidos como periferia. Estes bairros não possuem mais características de bairros periféricos que outros. Possivelmente são bairros mais famosos: Itaquera e Guaianases, por serem densamente habitados e por terem grandes estações de trem e metrô, e Capão Redondo muito possivelmente pela fama adquirida por meio das letras dos Racionais MCs. Até a visibilidade desses bairros já denota que não são tão precários, se comparados com outros mais distantes do centro e mais pobres.
Já o preconceito contra os moradores da periferia é uma questão importante e deve ser longamente debatida. Quatro em cada dez paulistanos dizem evitar certos bairros, mas eu acho que esse número é maior. Os moradores do centro e da região sudoeste são os que mais evitam ir à periferia.
AM: Você acha que a pesquisa poderia conseguir outros resultados?
Tiaraju: Creio que a pesquisa poderia chegar a outros resultados se formulasse algumas questões de outro modo. Construir uma pesquisa cujas possibilidades de resposta são “periferias” ou “não-periferias” é um erro de partida, pois a categoria “periferia” torna-se o eixo das classificações. É uma proposição de partida enviesada. Mais correto seria formular definições e perguntar se as mesmas caberiam para a periferia, para o centro ou para a região sudoeste. Como algumas perguntas foram mal formuladas, as respostas saem equivocadas tanto para definir o que seja “periferia” quanto para definir o que seja a tal “não periferia”.
Digo isto porque a oposição na cidade de São Paulo não se dá entre periferia e centro, como apontam alguns pesquisadores, mas sim entre periferia (locais cujos moradores possuem menos renda e são menos assistidos em termos de infraestrutura urbana) e região sudoeste (local cujos moradores têm maior acesso à renda e são mais assistidos em termos de infraestrutura urbana). O centro é um local heterogêneo com bolsões de pobreza. No entanto, mesmo a pobreza do centro tem maiores possibilidades de ser assistida do que a pobreza da periferia, pela maior oferta de serviços públicos, equipamentos, empregos e riqueza circulando nessa região. Contudo, insistir na oposição centro-periferia é um equívoco.
AM: Então como então sair desse círculo vicioso de representações pré-fabricadas e tautológicas?
Tiaraju: Creio que um bom exercício seria mudar o ponto de vista do qual se produz uma proposição. Para tanto, os moradores da periferia devem formular suas próprias perguntas e encontrar suas respostas, sem a mediação dos universitários da classe média, das grandes empresas da mídia e de pseudo-representantes políticos que só lembram da periferia em épocas de eleições.
E indo mais além, cabe lembrar que os moradores da periferia, enquanto sujeitos periféricos, assumindo-se enquanto tal, não são apenas bons explicadores da realidade da periferia (tão mal interpretada). São bons analistas do mundo, pois, ao circularem mais pela cidade, possuem uma visão mais alargada, além de viverem os conflitos da sociedade de uma maneira mais abrangente. De certo modo, quem se guetifica são os ricos e a classe média que, ao possuírem trabalho, serviços e lazer perto de suas residências, circulam menos pela cidade e possuem um leque de relações muito menor. Esta é a tese do urbanista Flávio Villaça. Dessa visão reduzida do mundo, derivada de uma vivência prática, derivam-se representações absolutamente distorcidas do que seja a periferia, uma realidade que poucas vezes (ou nenhuma) viram de perto.
AM: O que acha que tem mudado nas periferias ao longo das ultimas décadas?
Tiaraju: Houve uma melhora no acesso a serviços públicos (ainda que se possa discutir a qualidade destes) assim como um maior acesso ao consumo e a renda. No entanto, as desigualdades sociais seguem enormes, fundamentalmente com relação aos bairros de elite da cidade.
A melhora material produzida nos governos Lula e Dilma se desdobrou em, no geral, duas formas do morador da periferia compreender a si mesmo. Uma mais conservadora e outra mais crítica. A forma conservadora crê que os avanços obtidos foram graças aos esforços individuais. Esta parcela prefere ser chamada de Nova Classe Média e tende a discriminar aos mais pobres, tentando conservar para si as conquistas obtidas.
Outra parcela, que eu denomino crítica, literalmente não comprou o discurso de ser Nova Classe Média e passou a lutar por mais direitos sociais, para além daqueles já obtidos. Esta parcela também possui uma visão mais aprofundada do debate urbano e de como a periferia se insere de maneira subordinada na economia política e geográfica da urbe. É esta parcela também a que, por uma série de ações, tenta mudar pra melhor as condições de vida da periferia. São estes e estas que conceituo como sujeitos periféricos. Creio que o principal ocorrido na periferia nos últimos anos foi uma mudança de mentalidade.
AM: Como você acha que as desigualdades podem ser solucionadas?
Tiaraju: Por muito tempo se acreditou que as desigualdades se solucionariam por meio de um processo de mobilidade social ascendente. Ou seja, ter um bom emprego, adquirir boa renda e, na maior parte dos casos, sair da periferia. Essa lógica da ascensão social é individualista. Salvam-se os que puderem, mas a periferia vai seguir lá, com seus irmãos, irmãs, parceiros e parceiras de infância, com a qual esse indivíduo cresceu junto e formou uma comunidade.
Uma das formas de se solucionar as desigualdades seria por meio de um imenso investimento estatal de modo a oferecer a todos os territórios da cidade os mesmos equipamentos públicos, uma distribuição equitativa da rede de transportes, assim como possibilidades de acesso a renda e estudo. Desse modo (uma proposição quase utópica), diminuiria-se a desigualdade existente no preço dos terrenos e desse modo a segregação socioespacial. Essa estratégia de política focada em um determinado território menos assisitido, ou seja, a periferia, é o caminho mais viável para a solução das desigualdades. Nesse ponto, cabe destacar a luta de coletivos artísticos pela Lei de Fomento às Periferias, uma lei formulada pelos próprios moradores da periferia e que visa garantir recursos para a continuidade de projetos artísticos nesses territórios menos atendidos.
A questão da desigualdade segue sendo a produção coletiva da riqueza com distribuição desigual dos recursos na sociedade. Mas espero, que um dia, num futuro próximo, periferia seja apenas um adjetivo para definir um local geográfico. No entanto, enquanto houver desigualdades no espaço, periferia e periférico serão termos geográficos, sociais e de mobilização política.
Lívia Lima, correspondente de Artur Alvim
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