Arquivo Pessoal
Por: Halitane Rocha
Notícia
Publicado em 02.02.2023 | 18:09 | Alterado em 27.02.2024 | 17:29
Em 2021, mais de 15 mil boletins de ocorrência em delegacias de São Paulo relataram casos de intolerância religiosa. Os dados são da SSP (Secretaria de Segurança Pública) . Agora, o ano é 2023 e pouca coisa mudou em relação ao desrespeito às práticas de religiões de matriz africana e sua difusão.
A Agência Mural entrevistou lideranças religiosas do candomblé e umbanda em Cotia, na Grande São Paulo, que comentaram sobre como lidam com a intolerância, a trajetória espiritual e o resgate ancestral na região periférica da cidade.
Um deles é Helcio Barbosa Junior, 63, babalorixá e fundador da Casa de Airá – Tradição e Cultura, em Cotia.
A Casa de Airá, localizada no distrito de Caucaia do Alto, foi fundada em 2007 com a proposta política e social ligadas à situação do negro na região. Os eventos são voltados para a instrumentalização de educadores e estudantes, a promoção da cultura afrodescendente e seus protagonistas, além da participação em seminários, fóruns e movimentos sociais.
Antes de vivenciar o candomblé, Helcio foi educado pelos pais na igreja católica. “Devido às nossas heranças coloniais portuguesas, recebi uma educação religiosa voltada para o cristianismo católico. Fui batizado, fiz a primeira comunhão, crisma e cheguei a ser seminarista no início dos anos 1980.”
Ele conta que a avó paterna era umbandista, mas sua prática era negada, condenada pela família. E sentia a intolerância contra a avó desde a infância. “Sabemos que a demonização de nossas práticas sempre foi uma constante em nossa sociedade”, diz.
“Para os meus pais, tios, tias o caminho para uma ascensão social era se afastar de nossas raízes. Tenho nítido as aulas de catecismo, as ‘brincadeiras’ e apelidos que recebiam aqueles que perseveram”, lembra Helcio da intolerância presente também na igreja católica.
O encontro com o candomblé, por meio de um amigo, foi para fortalecer essas raízes silenciadas. “Comecei a procurar e entender mais esse processo de apagamento cultural e espiritual que vivíamos e comecei a me aproximar de minha raiz.”
Em janeiro de 2023, o babalorixá completou 32 anos nesta trajetória do candomblé. Com um ilê [casa de candomblé], em uma rua de Caucaia do Alto que nem o Google Maps ainda tem imagens, os filhos de santo ou visitantes de atendimentos espirituais enfrentam dificuldades para chegar ao local.
Porém, Helcio segue firme com o compromisso religioso e de resgate ancestral para moradores das periferias, sobretudo as pessoas negras.
“Esses elementos [religiosidade e etnia] colam-se e o resgate de um implica necessariamente o do outro e; com isso fortalecer a identidade do negro”, argumenta.
“Lembremos do desafio de ressignificar, para que todo brasileiro, independente da origem étnico-racial, possa reconhecer suas africanidades e se orgulhar delas”
Helcio Barbosa Junior, 63, babalorixá
Pai de santo no templo de umbanda Vô Lázaro de Aruanda (TUVLA), Ricardo de Almeida Prado Cattan, 53, também não cresceu na religião de matriz africana. Filho de pai judeu e mãe católica, o advogado começou a frequentar um terreiro de umbanda em Jacareí, interior de São Paulo, em 2007.
“Até que uma depressão severa me atingiu. Em 2011, recuperado, descobri minha missão de ser dirigente espiritual”, lembra. Cinco anos depois, Ricardo iniciou o curso de sacerdócio, concluído em 2017.
Neste período, o advogado conta que chegou a se iniciar no candomblé . “Foi muito bom para o meu caminho e desenvolvimento espiritual. [Mas] quando eu estava recolhido, me veio a certeza de que o meu caminho era a umbanda.”
A partir dessas experiências religiosas, o pai de santo Ricardo assumiu uma missão: abrir o TUVLA junto com a esposa, Mãe Julia, na Chácara Belverde, no limite de Cotia com Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo.
“Depois de muitos trabalhos espirituais e luta para angariar verba para manutenções, em abril de 2019 nasceu o Templo de Umbanda Vô Lázaro de Aruanda.”, conta.
Segundo ele, é um terreiro de umbanda de filosofia simples: pé no chão, ajuda ao próximo, fé, amor, empatia e honestidade, “como uma casa de Preto Velho deve ser”.
Para o advogado, “mais importante que leis, são as campanhas de informação que não existem na região [Cotia]”.
Há cinco anos, a Prefeitura de Cotia realiza no centro da cidade a “Caminhada pela Cultura de Paz e Não-Violência de Cotia”, representada por lideranças de diferentes religiões. O Pai de Santo Ricardo foi um dos que já participou, mas questionou a falta de divulgação da caminhada.
Para Ricardo, a umbanda representa as pessoas minorizadas pelo preconceito, como pretos, indígenas, nordestinos e crianças.
“Não somos nada sem nossos ancestrais. É a nossa referência, é de onde viemos e, acredito sinceramente, que é a nossa mais pura essência”
Ricardo de Almeida Prado Cattan, 53, pai de santo
“Na umbanda incorporamos guias espirituais, que nada mais são espíritos que nos antecederam. Como comunidade que somos devemos reverenciar nossa história e quem nos antecedeu. Resgatar a ancestralidade é um dever de todos”, conclui.
Produtora do podcast Próxima Parada e correspondente de Cotia desde 2018. Mãe de gêmeas e 2 gatas. Família preta e do axé… muita treta!
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