Arquivo pessoal
Por: Jacqueline Maria da Silva
Notícia
Publicado em 14.11.2025 | 9:00 | Alterado em 14.11.2025 | 16:53
Olhar para o alto, sentir a água tocar a pele em um banho de chuva. Um ritual para lavar o corpo, a alma e o espírito por meio da natureza. Este ato tem grande importância para o povo indígena Guarani Mbya, como conta Karaí Djekupé, 31, membro da Terra Indígena no Jaraguá, na zona oeste da capital paulista.
Ele nasceu quando São Paulo já não era mais a popular “terra da garoa”, mas viu a cidade se transformar mais e se tornar a “terra do desequilíbrio”, em suas palavras. Na região onde vive, viu chegar o asfalto, os prédios e o Aterro Sanitário Bandeirantes, localizado no distrito de Anhanguera.
Sua maior preocupação é que as futuras gerações Guarani não tenham água limpa para o banho de chuva, nem para garantir saúde e alimentação adequada. O risco pode ser agravado com a instalação de um incinerador de lixo na região, chamado Unidade de Recuperação Energética, que libera gases tóxicos na atmosfera e substâncias poluentes no solo.
“Quando descobri a proposta de uma incineradora tão próxima ao nosso território, o meu medo foi de sentenciamos nossas crianças a um futuro de doença, o que a gente não quer”, desabafa Karaí Djekupé, estudante de arquitetura e urbanismo e liderança indigena.
Unidade de Recuperação de Energia é uma usina que faz o tratamento de resíduos sólidos (lixo) por meio da queima e com a combustão gera energia térmica ou elétrica que pode ser usada para funcionamento da própria usina.
Fonte: Portal Plástico Transforma
A licitação para a obra já está em processo de análise pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), órgão responsável pela liberação ambiental.
A notícia da construção de uma URE no Aterro Bandeirantes se tornou pública no início de outubro, às vésperas da COP30, Conferência da ONU sobre as mudanças climáticas, que reúne líderes globais em Belém até 21 de novembro.
Conselheiros ambientais da região tiveram acesso a um documento do projeto da Loga (Logística Ambiental de São Paulo), responsável pela gestão de resíduos do equipamento, que sinalizada a construção do incinerador. Contrários à medida, moradores e ativistas criaram o movimento “Incinerador de Lixo em Perus, não”.

Movimento “Incinerador de Lixo em Perus, não”, comunidade se reúne periodicamente na sede do coletivo Quilombaque, em Perus @Arquivo pessoal
“[A decisão] vem de encontro ao racismo ambiental que todas as periferias, não só de São Paulo, mas do Brasil, enfrentam. É um descaso e ausência de diálogo com a comunidade. Simplesmente decidem por projetos que a médio e longo prazo vão prejudicar todo o território”, diz Thaís Santos Silva, 42, de Perus. Ela é química e co-fundadora e integrante do Coletivo Quilombaque, que existe há 20 anos e encabeça o movimento.
Lideranças de Perus que participam da COP30 prometem levar as reivindicações contra o aterro para a Conferência. “A principal ideia é fazer conexão com as demais lutas. Como teremos representantes do município paulista e eleição no ano que vem, essa COP também é uma vitrine para muitos políticos que estão buscando criar uma narrativa para a campanha”, avalia.
O Coletivo Quilombaque defende que a queima de lixo irá causar impactos graves para o entorno, sobretudo para o parque Refúgio de Vida Silvestre (RVS). O espaço abriga fauna e flora silvestre e é uma Unidade de Conservação (UC) protegida por Lei.
Entre os principais impactos para a vida silvestre e para a saúde dos moradores estão:
A toxidade dos resíduos da incineração pode incentivar animais a migrarem de seu habitat ou até causar a morte.
A construção do incinerador pode ter efeitos diretos na saúde dos trabalhadores do aterro, além de impactar na economia das cooperativas que dependem da coleta e separação de materiais recicláveis.
Um dos produtos da queima de lixo é a chamada “escória”, o resíduo sólido que sobra do que foi incinerado. Ela concentra substâncias poluentes e tóxicas e demanda tempo para poder ser manejada. Os gases que ela libera permanecem no ar e a massa no solo, o que não acabaria completamente o volume de lixo no local.
Além disso, o estudo apresentado pela Loga para construção do incinerador – disponível no Sistema Eletrônico de Informações da prefeitura – não deixa claro o potencial de produção de energia da unidade, com risco que o calor gerado seja usado apenas para manutenção do maquinário.
A população da Terra Indígena do Jaraguá será uma das mais afetadas, acredita Thais. Ela defende que, considerando a proximidade com a área em processo de demarcação, o debate sobre o incinerador precisa envolver outros órgãos, como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais).
“A decisão fere a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que protege os povos indígenas e garante consulta prévia às comunidades sobre ações que impactem nosso território”, reforça Karaí Djekupé.
Apesar de reconhecer a importância de levar a discussão para a COP 30, o líder indígena não acredita que haja desdobramentos positivos sobre o assunto no evento.
Para ele, a luta deve continuar no território, ampliando o debate com a população e mobilizando mais gente. “Vamos continuar articulando e conscientizando para que as pessoas entendam a gravidade. Acho que só a união pode barrar o projeto. Primeiro a gente tem que se fortalecer, juntos. Mais fortes conseguimos fazer algo, sozinhos temos menos chances”.
Por isso, um dos objetivos do movimento é tentar reverter a decisão, que não passou consulta dos moradores e se baseia em outros projetos de UREs, implantadas em locais com estrutura e contexto socioeconômico e ambiental diferentes de Perus, como cidades do Japão, Suíça, Itália e Dinamarca.

Movimento tenta diálogo com órgão para impedir mais um projeto de impacto ambiental
“Temos o Plano Nacional de Gestão de Resíduos Sólidos e a prefeitura de São Paulo está indo contra ele. São previstos três “erres”: reduzir a produção de lixo, reutilizar e reciclar. Precisamos fazer valer essa cadeia antes de pensar em incinerar”, conclui Thais.
O movimento de moradores reivindica mais transparência e diálogo com a prefeitura, a Loga e Cetesb. Em nota, a Loga afirmou que pretende se reunir com a comunidade local para debater o peojeto, mas não informou data. Segundo a empresa, o investimento previsto é de R$ 3,7 bilhões, para a implantação de Unidade de Recuperação Energética (URE), o Tratamento Mecânico e Biológico (TMB), biodigestores e uma fazenda solar fotovoltaica, que fazem parte da iniciativa Ecoparque Perus.
A Loga pontuou que as UREs não oferecem riscos à saúde da população e reduz o envio de resíduos aos aterros sanitários, amplia a reciclagem, gera energia limpa e contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa.
A Cetesb informou que o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) “encontra-se em fase de análise técnica” e que até 6 de novembro não foram emitidas licenças ou autorizações para o empreendimento.”
Já a prefeitura de São Paulo reforçou que a construção do incinerador está em fase de licenciamento junto à Cetesb e que as unidades não oferecem riscos à saúde da população, “sendo amplamente utilizadas em áreas residenciais de diversos países”.
Jornalista, vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para [email protected]