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A história de vida e morte da minha mãe

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Por: Caê Vasconcelos

Crônica

Publicado em 21.09.2017 | 17:05 | Alterado em 27.02.2024 | 16:25

Tempo de leitura: 8 min(s)

A anti-heroína que se foi aos 47 me mostrando que precisamos falar de depressão e de suicídio, sem medo

Arte: Magno Borges/Agência Mural

Minha mãe nunca fez o tipo heroína. Entre a Mulher Maravilha e a Jessica Jones, ela certamente se parecia mais com a segunda: anti-heroína, complexa e cheia de defeitos.

Mas uma coisa é certa: ela marcou a vida de muita gente. Pouco antes de cometer suicídio, em nossa casa, na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital paulista, ela brincou que o meu próximo livro seria uma biografia dela. Tudo ainda recente e marcante: minha mãe partiu há pouco mais de dois meses, no alto de seus 47 anos.

Espero que esta crônica consiga honrar a história de vida e morte da minha mãe, e, de alguma forma, tocar familiares e amigos de pessoas com depressão. Além deles, os sobreviventes (aqueles que ficam quando uma pessoa próxima se suicida).

Minha mãe era o tipo de pessoa que se entregava de cabeça em tudo. Principalmente no amor. Wagner, meu pai, foi o grande amor da vida dela.

Quando se conheceram, ela tinha 16 anos. A paixão foi tão intensa que logo se casaram. Sem pensar duas vezes, minha mãe largou os estudos pra entrar de corpo e alma nesse amor. Ela nunca foi uma pessoa fácil, fazia o tipo durona e mandona. Enquanto ele era super calmo.

Minha mãe dizia muito que eu sou a cópia dele, mas ela devia saber que tenho muito dela também, afinal, foi ela quem me ensinou a ser forte, a lutar pelos meus sonhos e sentir orgulho de ser quem sou.

Apesar dos meus pais terem se casado depressa, eles planejaram muito o meu nascimento — a primeira filha. Só em 1990, aos 21 anos dela, decidiram que aquela deveria ser a hora da minha chegada. Em abril de 1991, eu nasci.

Durante os meus primeiros 22 meses, meus pais me curtiram juntos. Até que as coisas começaram a desandar: ele descobriu que estava com câncer cerebral em estágio avançado. Daquele dia até a morte dele, pouco tempo se passou.

Em 4 de abril de 1993, meu pai faleceu, não aguentou a cirurgia de retirada do tumor. Com a morte dele, algo se quebrou pra sempre dentro da minha mãe.

Os primeiros estágios da depressão

Perder o marido de forma inesperada fez com que minha mãe entrasse em depressão. Arrisco dizer que só não foi fatal, pois ela tinha que me criar e tentar suprir a falta que meu pai faria em minha vida. De imediato, ela voltou pra casa da minha avó materna, Raimunda, para encontrar conforto nos braços da minha família. Também voltou a estudar, se inscreveu no EJA (Educação de Jovens e Adultos) — em diversas aulas me levava nos braços.

Eu fui a força que ela precisou no pior momento da sua vida. Ela só tinha 23 anos e precisou seguir.

Depois de trabalhar em bicos (a maioria em trabalhos como vendedora em lojas de calçados), em 1997, ela conseguiu um emprego no antigo PAS (Plano de Atendimento à Saúde), uma espécie de posto de saúde criado pelo então prefeito Paulo Maluf, e foi atrás de um curso de auxiliar em enfermagem para entrar na área da saúde. Desde então, essa se tornou a profissão dela.

Depois de muito relutar, minha mãe começou a namorar de novo, por volta dos anos 2000. Cinco anos depois, ela deu a luz à minha irmã, Amanda.

Junto com a segunda filha, nasceu a segunda depressão, dessa vez pós-parto.

Na época, ela trabalhava em um hospital particular e, como funcionária, fez todo acompanhamento pré-natal e parto lá. O quarto que ela ficou em recuperação, destinado aos funcionários, não tinha proteção nas janelas. Se não fosse a entrada de uma visita, bem na hora, minha mãe teria pulado do quarto andar do prédio.

A segunda depressão não demorou tanto quanto a primeira, eu estava terminando o ensino fundamental, aos 14 anos, e uma nova criança precisava dos cuidados dela.

Minha mãe largou sonhos e objetivos e lutou intensamente contra as duas primeiras depressões por mim e pela minha irmã. Trabalhou muito para nos dar a vida mais confortável possível.

Ela tinha muita dificuldade de demonstrar afeto, mas hoje sei que isso nunca quis dizer que ela não nos amava. Cuidar do nosso futuro, mesmo não acreditando no seu, era o jeito dela de expressar esse sentimento.

Minha mãe não era o tipo feminista, mas sempre me ensinou a ser uma mulher forte e independente. Sem saber, ela e a minha avó me deram os primeiros passos para o feminismo. Também foi ela quem me ensinou a ter orgulho de quem eu sou.

Em 2008, quando eu tinha 17 anos e ela descobriu a minha homossexualidade, me fez jurar que nunca deixaria ninguém me diminuir por conta da minha orientação sexual. Ela foi a segunda a me aceitar, do jeito torto dela; a primeira foi a minha avó.

A grande depressão

Em 2012, minha mãe fez redução do estômago, procedimento conhecido como cirurgia bariátrica. Desde a morte do meu pai, ela veio engordando gradativamente, até chegar ao ponto da obesidade interferir em seu desempenho no trabalho e afetar intensamente a sua autoestima. Acredito que esse tenha sido o momento em que podíamos ter intervido, pois da redução em diante minha mãe desenvolveu o alcoolismo, fator que foi determinante em sua morte.

Nos últimos 10 anos de sua vida, ela atuou como auxiliar de enfermagem no Hospital Geral de Vila Penteado, no turno da noite. Como ela amava enfrentar um plantão intenso!

Tudo começou a desmoronar quando ela sofreu um acidente de trabalho, em 2015, e foi afastada por tempo indeterminado do trabalho. Ao carregar um paciente da maca para a cama, com a ajuda de só uma funcionária, ela fraturou três vértebras da coluna.

Minha mãe sempre teve uma resistência física admirável, então não percebeu a lesão naquele momento e continuou trabalhando a noite inteira. Só quando chegou em casa, notou algo errado. O procedimento cirúrgico pra recuperar a mobilidade da minha mãe foi muito delicado. Foi necessário retirar um osso de ligação do pescoço para consertar o dano na coluna cervical.

Sabíamos que a recuperação seria delicada, mas a chance dela voltar a trabalhar era grande. Só que quando chega a grande depressão, as certezas se tornam dúvidas. Mesmo a cirurgia sendo bem-sucedida, deixou um dano permanente no ombro direito da minha mãe. Só um milagre a faria voltar a trabalhar.

Infelizmente, esse milagre não veio. No lugar dele, vieram outras lesões. Uma queda em decorrência do álcool a fez quebrar o joelho. Outra lesão permanente. Ao mesmo tempo, ela passava por uma crise de vesícula que a fazia chorar de tanta dor, precisamos travar uma briga pra conseguir que ela operasse. Após mais de um ano de sofrimento, conseguimos marcar a cirurgia pra retirar as pedras do órgão.

Nos últimos dois anos, minha mãe sofreu física e emocionalmente. Quando algo de bom acontecia, dez coisas ruins vinham junto. Foi nesse período que ela começou a abusar no consumo de álcool.

No ano passado, minha mãe decidiu buscar ajuda. O primeiro passo foi conversar com a Assistente Social responsável pelo posto de saúde do nosso bairro.

Poucos dias depois, minha mãe tinha em mãos o encaminhamento pro AME (Ambulatório Médico de Especialidades) para iniciar o acompanhamento psicológico.

A unidade mais próxima de Vila Nova Cachoeirinha é a de Vila Maria, 16 km de distância e mais de duas horas dentro do transporte público. Fui com ela na primeira consulta, mas ela pediu que eu esperasse do lado de fora do consultório, não queria que eu soubesse como ela se sentia.

Depois da primeira conversa com a psicóloga, ela recebeu a primeira receita de remédios controlados. Uma vez por mês, precisava voltar para avaliação. Por volta do terceiro mês, ela teve o diagnóstico: depressão nível 3, estágio mais delicado da doença, além do transtorno de bipolaridade.

Ela seguiu firme no tratamento por um tempo, mas nunca deixou de beber, o que afetou o efeito dos medicamentos. Ela tentou lutar, mas já estava na grande depressão.

Em fevereiro deste ano, minha mãe chegou pra mim um dia e disse: “Eu não quero mais viver e espero que você entenda isso”.

Comecei a chorar na mesma hora. Eu, que nunca superei a ausência do meu pai, mesmo não lembrando da convivência com ele, como poderia perder a minha mãe também? Só nesse momento eu realmente me dei conta de que ela sofria de depressão.

Decidi que, dessa vez, ficaria do lado dela. Incondicionalmente. E por três meses foi assim. Eu acredito que o meu apoio fez com que ela ficasse mais um pouco com a gente. Passei por cima de tanta coisa. E ela ficou, por completo! Quase livre da doença que há tanto tempo nos acompanhou. Tive a minha mãe de um jeito que nunca havia tido antes. A gente conversava, dava risada e chegamos a falar o quanto a outra era importante.

Mas a depressão é uma doença traiçoeira. Quando você acha que está tudo bem, ela volta muito pior que antes. E voltou mais forte do que nunca.

Minha mãe desistiu do tratamento psicológico, deixou de tomar os remédios controlados e começou a pensar que a nossa família era a responsável pela sua doença. O grande problema é que ninguém percebeu que isso estava acontecendo.

Quando tudo começou a desmoronar de vez, eu estava focada em meu Trabalho de Conclusão de Curso. Nem eu nem a minha família percebemos o que estava acontecendo. Minha mãe, em seus últimos meses, passou a agir como uma adolescente rebelde. Nós, sua família, nos tornamos seus inimigos. Mas, longe de casa, entre aqueles que ela chamava de amigos, tudo estava bem. Então, acreditamos que realmente estava tudo bem.

No último dia em que vi minha mãe com vida, saí de casa sem me despedir. Mais uma vez ela gritava sem motivo, como fazia frequentemente. Dei tchau pra minha irmã e fui embora, rumo à casa da minha namorada.

Pensei: “Na segunda ela estará com o humor melhor, como sempre acontece”. Infelizmente, a segunda-feira nunca chegou. O abraço que não dei antes de sair agora se tornou dor. Dor de me tornar órfã. Dor de não ter sido capaz de salvar minha mãe.

Será que fui negligente? Será que, se eu tivesse cuidado mais dela, ela ainda estaria aqui? Faltam poucos dias para completar dois meses que ela se foi e às vezes essas perguntas insistem em aparecer. E perturbar.

No fundo, sei que fiz tudo que pude. Eu sei que, indiretamente, ajudei para que ela aguentasse por mais tempo. E sei que, do jeito dela, ela amou a mim e a minha irmã com toda a força dela. Isso me conforta.

Ser sobrevivente não é fácil. Mas pode ser menos dolorido. A melhor forma de lidar com o suicídio é não se culpar e não sentir raiva de quem o cometeu.

Particularmente, preferi encarar isso com toda transparência e sinceridade possível. Todo mundo que me pergunta o motivo da morte da minha mãe sabe a verdade; se eu sentisse vergonha de ter uma mãe suicida, automaticamente teria vergonha de tudo que ela passou, da luta incansável que ela travou nos últimos anos; se eu inventasse uma outra morte pra minha mãe, negaria a mulher forte que ela foi; negaria as suas dores, tão profundas e tão parte de quem ela era. Jamais faria isso com a memória dessa guerreira que tenho orgulho de chamar de mãe.

Agora, mais do que nunca, eu vejo como é necessário falar de depressão e de suicídio, sem medo, sem vergonha, sem tabus.

Como uma pessoa que sofre com isso e tem inclinação para cometer suicídio precisa ser compreendida, precisa ser ouvida. Eu falhei com a minha mãe, mesmo que isso não tenha sido o fator crucial em sua morte, mas, sim, eu falhei.

Podia ter conversado mais, escutado mais, tentando entender o que se passava em sua mente, mas fui egoísta. Por isso, hoje, me recuso a continuar sendo egoísta. Não guardo mágoas nem guardo rancor. A única coisa que quero guardar dela é amor e saudade.

Dois dias depois da morte da minha mãe, a assistente social que a encaminhou ao tratamento psicológico veio me visitar. Jamais vou esquecer o que ela me disse: “A gente consegue consertar tudo: coração, braço, perna… mas a cabeça, não”. Talvez ela tenha razão, talvez uma pessoa com depressão nunca se livre da doença. Mas cabe a nós, pessoas próximas e familiares, dar todo o amor e apoio que essa pessoa precisa.

Caê Vasconcelos é correspondente da Vila Nova Cachoeirinha
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Caê Vasconcelos

Jornalista, homem trans e bissexual. Autor do "Transresistência" e repórter especializado em direitos humanos e na editora LGBT+. Correspondente de Vila Nova Cachoeirinha desde 2017.

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