“E esse pipa aí, da hora? Aonde você comprou?”. “Pô, foi no meu vizinho lá, o Hamilton.” “Será que ele faz um pra mim também?”. Com um legado de alegria e defesa das brincadeiras de rua, morreu nesta quinta-feira (21), Hamilton Souza Silva, 53, o Miltão Pipas, em decorrência de um câncer na região bucal.
Foi no boca a boca que a arte dele se tornou conhecida no Grajaú, extremo-sul de São Paulo. Ele começou a produzir os “papagaios” ainda na infância para soltar nos terrenos baldios do bairro.
Em 2013, inaugurou uma loja para a alegria da criançada. Da caçulinha até a gigante, em 2021, as criações dele foram parar no São Paulo Fashion Week, um dos eventos mais importantes de moda do mundo, durante o desfile Fluxo Milenar, da marca Mile Lab.
“Uma criança que nasce na periferia, ela já admira o pipa. Eu fui encantado dessa forma. Se tem uma coisa que me faz esquecer os problemas, é quando o pipa está no alto. O pipa é uma liberdade”, dizia.
Legado
O pipa era a grande paixão da vida de Miltão e o que mais o deixava feliz era ver o brilho nos olhos da molecada. O artesão também lutava contra o preconceito associado ao brinquedo, já que por muitas vezes o pipa foi marginalizado pelos pais.
“Ele fazia pipas alegre e colocava no ar pra criançada. Pessoas como o Hamilton são muito importantes, pois resgatam a nossa antiga infância. Tenho certeza absoluta que seu legado vai perdurar por muitos anos”, diz Anderson Costa, fundador do Na Rua, Sem Wi-fi, projeto que resgata antigas brincadeiras de rua.
‘As crianças que hoje são adultas e os mais pequenos, sempre vão lembrar: Eu comprava pipas lá no Miltão. Gratidão‘
Anderson Costa, fundador do Na Rua, Sem Wi-fi
A história dele foi contada pela primeira vez na Agência Mural em abril de 2022 em texto e no podcast Próxima Parada, no qual rendeu o Prêmio Sebrae de Jornalismo na etapa estadual São Paulo na categoria áudio. Em novembro do mesmo ano, Miltão foi personagem da série “Crias”, projeto financiado pelo ICFJ (International Center For Journalists).
Com muito carinho, ele produziu uma pipa especial com o logo da Agência Mural que foi parar na sede e também no estado de Recife, onde mora o diretor de tecnologia Anderson Menezes.
Miltão foi inspiração para um filme e realizou uma participação especial no curta-metragem “O Pipa”, produzido por meio do edital do Programa Trânsitos para o Instituto Tomie Ohtake.
“É a ausência da alegria, da gentileza, do cuidado e do fortalecimento. O que fica do legado é ter tido a oportunidade de conhecer uma pessoa como ele, que fez todo o possível para fortalecer a sua família, seu trabalho e sua comunidade”, relata Léu Britto, fotojornalista da Agência Mural e assistência de direção do curta-metragem.
Recentemente, o Projeto Atalaia, que cuida de dependentes químicos da região, passou a produzir pipas pelo Miltão, já que ele estava em repouso por conta da enfermidade.
“Falar do Hamilton, é falar de família, de esperança e de abraço. Onde ele andava, ele levava a alegria. Hoje é um dia triste, porque estamos dando o adeus ao Miltão. Vai deixar muitas saudades, porque aquele sorriso é inesquecível”, relata Edvaldo Jorge, integrante do projeto.
‘O Grajaú precisa de pessoas como ele. Ele partiu, mas deixou um legado gigantesco‘
O último empreendimento foi a criação do Bar do Miltão em julho de 2023, em parceria com a Sabores Divinos. Mara Luiza Oliveira, fundadora da iniciativa, lamenta com pesar a perda do amigo. “Combateu o bom combate. Obrigada pela oportunidade de caminhar com a minha família. Tivemos momentos maravilhosos. Até breve, querido!”.
Miltão deixa a esposa, Claudineia, os filhos Ítalo Augusto e Ingrid Cristina Costa, e duas netas.