As pessoas ricas querem cantar ‘Som de Preto’ apenas se o favelado estiver longe
“Na hora que me escutar, vai ver que isso não é drama.” Ou pode ser. Caso fosse barrado de entrar no baile funk organizado pela Avenue Club, na Vila Madalena, zona nobre de São Paulo, onde aconteceu este mês um show do funkeiro MC Livinho.
A página do evento no Facebook listava várias restrições para a entrada no show, incluindo o uso de roupas de moletom, gorro, regata, camisetas de times, torcidas ou fã-clubes, bermuda, calça capri, correntes e adereços, estes sem maiores especificações.
Ou seja, um fã do Livinho – ou de praticamente qualquer outro funkeiro — que o vê de regata, boné e correntes em seus vídeos e shows, pode ser barrado por usar justamente as mesmas peças, tão associadas à identidade visual do gênero.
Ainda assim, o público foi alertado de que mesmo não usando nenhuma peça fora dos padrões teria seu visual submetido à avaliação da hostess na entrada. No entanto, cabe a cada um descobrir o que a devida moça julga aceitável de se vestir para um show de funk.
Não fossem essas restrições um tanto incabíveis para um show de funk — de onde espera-se um ambiente pouco restritivo, diversificado — o evento ainda dizia que o preço de entrada poderia ser diferente do anunciado dependendo da demanda, prática considerada ilegal no artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor.
Olhando outros eventos da mesma casa, como um baile funk direcionado aos alunos do Mackenzie — universidade onde estudam predominantemente membros da classe mais alta — , as mesmas restrições podem ser conferidas. A prática é praxe nas festas da Avenue Club. Em linhas claras, isso pode ser interpretado como uma forma de filtro social, higienista e de elitização do funk.
Se alguém de aparência mais humilde quisesse entrar, poderia ser surpreendido com um valor bem maior do que o esperado, ou julgado e, consequentemente, barrado por sua aparência. De forma que eu e meus amigos sentimos que aquele lugar não era para a gente. Poderíamos ser julgados por parecer pobres demais, feios, com cara de bandidos (já ouvi gente nobre descrever funkeiros assim), ou outro julgamento superficial.
É impossível prever se seria barrado, porém havia a possibilidade, o aviso já deixa implícito quem é bem-vindo ou não.
Dia desses escutei a amiga de uma tia minha comentando sobre a aversão de sua sogra, uma senhora branca e de elite, em relação às crianças negras, como se essas, devo salientar, lhe causassem nojo.
Se pessoas da elite tem nojo de crianças negras, quem dirá que o adulto preto e pobre será bem-vindo em espaços sob seu domínio? Eu, homem negro, sinto que não o sou. Eu ouvi essa história sendo contada em tom de normalidade, cara a cara. Assim como no evento as restrições eram descritas como algo comum.
A elite ainda considera normal inferiorizar e segregar a população negra, como se esse tipo de situação não fosse humilhante.
Não é novidade que há preconceito racial e de classe nas baladas paulistanas. Em setembro, o Villa Mix foi determinado pela Justiça a indenizar uma ex-funcionária em R$ 60 mil por danos morais. A hostess, mulher negra, era orientada a barrar a entrada de pessoas negras, malvestidas ou de baixo poder aquisitivo.
Inicialmente restrito aos bailes de favela, o funk se tornou onipresente nas casas noturnas e bares paulistanos. Ameaçado de censura por políticos conservadores e instituições religiosas, o gênero só aumenta seu alcance em todos os setores sociais.
Hoje em dia, em qualquer balada da rua Augusta, no centro, é quase certo que durante a noite um set será dedicado ao estilo, e quando não toca, o público reclama. Já ouvi até história de DJ que desistiu de tocar as músicas que havia planejado — um set eletrônico — após a pressão dos participantes na festa.
Empresários encontraram um público em busca de bailes funk, porém sem coragem de ir aos pancadões das periferias, e nisso um mercado em potencial a ser explorado. É ótimo que as elites também se interessem por um movimento cultural nascido nas favelas — desde que não se exclua o acesso de pessoas às festas do gênero por conta de sua origem ou aparência.
As pessoas ricas querem cantar ‘Som de Preto’ apenas se o favelado estiver longe. De pulmões cheios, a elite canta sobre a opressão sofrida nas comunidades brasileiras, esquecidas pelo poder público, sem nunca ter ao menos andado a pé na periferia. A cultura das periferias é explorada — assim como já aconteceu com o samba, o pagode — excluindo a periferia da narrativa.
Enquanto na Vila Madalena o jovem de elite curte o show do MC Livinho, se achando o malandrão por ouvir funk, nas periferias os moradores ainda respiram bombas de gás e sofrem muita opressão nos pancadões.
Livinho canta “precisa raciocinar”, mas o jovem branco não se dá ao trabalho de fazer isso. Em um baile da periferia a população sofre opressão por ouvir funk, enquanto ele pode ouvir tomando Vodka com energético sem transtornos.
Não reflete, tampouco sobre seus privilégios e como incentiva estruturas opressivas. Claro, para ele aquela é a ordem natural das coisas. Seus pais provavelmente trabalharam muito para lhe comprar um carro, pagar seu intercâmbio. Pouco conhece sobre as cicatrizes de séculos de escravidão, pensa até que isso é balela para a população negra conseguir privilégios com as cotas. Afinal, trabalhando muito se consegue entrar em qualquer lugar, não é?
Em uma rápida pesquisa por funk no Google é possível ver diversas notícias relatando ações policiais buscando coibir a realização dos bailes em várias cidades.
Sem muitas opções de lazer, as festas de rua atraem centenas de pessoas nas comunidades, incluindo crianças e adolescentes, expostas, muitas vezes, ao consumo de bebidas alcoólicas e drogas. Para o bem ou para o mal, nas periferias o acesso aos bailes é livre. Enquanto isso, nas áreas nobres o que se segue é opressão atrás de opressão. Gente preta sendo impedida de expressar sua identidade cultural, enquanto à elite é permitido apropriar-se dela.
Gabriel Vinicius de Sousa é correspondente do Jardim Eliza Maria/Brasilândia.
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