Donizete de Souza Lima, ou melhor, Bonga MAC, 47, começou a brincar de desenhar ainda nos idos dos anos de 1990. Morador de Caieiras, na região metropolitana, conheceu o grafite ao mesmo tempo que conhecia a cidade, entre uma viagem de trem e outra de ônibus, da periferia até o centro de São Paulo.
“As redes sociais eram as ruas. Quando você transitava, você tinha referências nesse universo gigantesco que é a cidade. Eu saía de um bairro pequeno e afastado [em Caieiras], praticamente no interior, para ir para onde tinha prédios que não estava acostumado a ver. Isso deslumbrava.”
Na época, as referências artísticas também eram acessadas por meio de revistas físicas importadas que, muitas vezes, demoravam meses para chegar.
“A gente comprava uma revista em três ou quatro pessoas e dividia o valor. Às vezes, era a única revista na banca da Avenida Paulista que tinham importado”, relembra o grafiteiro.
“O primeiro livro que comprei demorou seis meses pra chegar. Era o que a gente chama de ‘bíblia do grafite’, o ‘Spraycan Art’. E meu primeiro DVD de grafite eu comprei na mão dos Gêmeos [os grafiteiros]. A informação era muito difícil e eu estava muito afastado”, conta.
Kombozas: arte em troca de apoio
Com esse histórico de driblar a falta de acessos e inspirações, Bonga também precisou se reinventar em meio à pandemia de Covid-19. Com receio de se contaminar e infectar os familiares, o processo que antes se dava nas ruas, começou a ganhar vida em kombis.
O grafiteiro já havia experimentado pintar esse tipo de automóvel quando viajou para outros países. Ao pintar a kombi de um profissional de reciclagem, teve a ideia de fazer uma série de desenhos de maneira gratuita para outras pessoas.
“Era um jeito de dar novos significados ao trabalho dessas pessoas, que muitas vezes não têm condições de fazer a funilaria”
Desde o começo de 2021, Bonga vem transformando a rotina de muita gente por meio do grafite, ao customizar kombis novas ou antigas. Depois de publicar as fotos em grupos de kombeiros, a iniciativa foi chegando nos mais diversos lugares, o que nem mesmo Bonga esperava.
“Extrapolei a primeira ideia de apenas fazer para o pessoal da reciclagem, e começou a vir gente de motorhome, serralheiros, marceneiros e feirantes”, comenta ele. Agora, já são mais de 70 veículos pintados.
Bonga, que frequentemente realiza trabalhos pedagógicos voluntários nas periferias, entendeu que o “Kombozas”, como se chama o projeto, também tinha um potencial social. Para cada pintura em uma kombi, ele pedia uma moeda de troca: que o dono da perua realizasse uma ação social em sua própria comunidade.
“A pandemia abriu as feridas que já existiam, como a questão alimentar, que ficou muito mais evidente. Percebi a dificuldade de distribuição de [alimentos] de algumas organizações”, exemplifica.
Ou seja, o intermédio entre as entidades que centralizavam alguns alimentos e quem fazia a distribuição na ponta era um problema. Como solução, Bonga sugeriu que os kombeiros começassem a fazer esse transporte, em contrapartida ele realizava a pintura do veículo.
Kombozas faziam entregas em ações sociais @Divulgacão
Com isso, o artista ajudou, direta e indiretamente, diversas organizações. Universidades da região noroeste de São Paulo fizeram ações de doação de brinquedos no Dia das Crianças e kombeiros parceiros realizaram o transporte até os pequenos.
Bonga diz que há motoristas realizando iniciativas sociais até mesmo em outros estados, como Minas Gerais, para ganhar uma pintura. “Já teve até mesmo pessoas da América do Sul querendo vir pra cá”, conta, orgulhoso. Ouça essa história também no podcast Próxima Parada:
As histórias por trás das kombis
Além da ação social em si, para Bonga uma das coisas mais interessantes do projeto é ouvir histórias e realizar sonhos. “Tem gente que sai daqui chorando, emocionados porque ganhou uma pintura.”
Uma dessas histórias é a de Beto, que gesta um Ferro Velho em Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Sua kombi era enxergada como uma relíquia deixada pelo pai, quase um presente de família passado de geração a geração. Quando chegou até o Bonga, encontrou a oportunidade que faltava para reformá-la e honrar a memória paterna.
“A kombi estava bem deteriorada e eu pintei. Uma kombi do estilo “corujinha”. E ele [Beto] ficou emocionadíssimo com a kombi”, narra.
Grafiteira fa sobre as reações de felicidade dos kombeiros @Divulgacão
“Iria pintar como se fosse um dragão, mas o dono era mais evangélico, aí ele ficou meio incomodado. Mudei na hora e comecei a criar uma coruja. A kombi ficou linda, deu uma repercussão bacana no bairro.”
Sobre o processo criativo da pintura, Bonga explica que não tem orientação, mas que insere elementos com os quais os donos das kombis se identificam.
“Na verdade, é um presente meu para as pessoas. Peço para não ter direcionamento pra criar. Mas tem muita coisa que rola do gosto da pessoa também, do que ela se identifica [na pintura]”, conta.
Artista vê o grafite como registro da cultura periférica @Divulgacão
Além disso, falar em grafite, para Bonga, é falar em registro.
“É um processo coletivo, efêmero. O grafite não vai ficar pra sempre. Vai ser derrubado, pintado por cima, apagado, destruído, ele vem e volta. A rua é isso”
Para ele, o grafite se conecta com a rua, que é “efêmera e cíclica”, por isso a importância de ressignificar e registar, explica.
No projeto “Kombozas”, Bonga faz os registros das peruas pintadas e contabiliza para bater um ranking mundial. Em março de 2018, ele chegou a ser coautor do livro “Tinta Loka”, escrito em parceria com a jornalista Tamires Santana e publicado pela Editora LiteraRua.
“É a realização não só de sonho, mas uma forma de contribuição para o grafite e para a cultura hip hop”, define.