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Cadê as periferias na Meia Maratona de São Paulo?

Correspondente da zona norte narra participação em uma das provas mais importantes de São Paulo e constata que desigualdade também existe no atletismo

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Arquivo Pessoal

Por: André Santos

Crônica

Publicado em 10.12.2021 | 16:41 | Alterado em 10.12.2021 | 16:44

Tempo de leitura: 5 min(s)

Nunca havia corrido uma meia maratona e estava ansioso. Embora haja outros corredores amadores no Jardim Fontalis, onde moro na zona norte de São Paulo, não tinha conhecimento de nenhum outro que correria a Meia Maratona de São Paulo. Fui sozinho para esse desafio.

O relógio despertou às 4h15 (dormi menos de quatro horas), chego ao ponto de ônibus faltando dez minutos para 5h. Ponto vazio, é domingo (5). O ônibus demora, mas chega. Durante todo o trajeto fico ansioso para ver outros corredores no transporte público. Passo por Jardim Fontalis, Ataliba Leonel, Vila Mazzei, Tucuruvi. Nada!

No metrô havia apenas um rapaz que entrou na estação Carandiru e fomos só nós até o local da largada. Não nos falamos, mas foi um alento. Até porque o metrô da linha 3-vermelha atrasou demais e estava com o tempo de parada ampliado devido à manutenção na via – ao menos foi o que alegaram.

Rolou uma tensão forte, medo de perder a largada, que seria às 6h30, mas deu certo. Chegar até ali já tinha sido uma maratona de ônibus, metrô e uma caminhada de aproximadamente 1,5 km. Imagino uma trabalhadora, ou trabalhador, com uma rotina desgastante, topar fazer esse rolê mais uma vez no dia de folga. Mas, tem que manter o foco no ‘corre’, ou seja, na corrida.

Não vi mais o rapaz quando nos misturamos aos milhares de corredores em frente ao estádio municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu. Muitos automóveis ao redor do estádio, guardadores de carro trabalhando em ritmo acelerado – boa parte dos atletas que correriam 7 km, 14 km ou 21 km optaram em ir de carro.

Entre os corredores é comum a formação de equipes de corrida, muitas pessoas preferem correr em conjunto, transmitindo força uns aos outros. Prefiro correr sozinho, com minha playlist pré-produzida.

Entre as equipes procurei alguma que fizesse referência a alguma quebrada, rodei bastante antes da largada, lendo as camisetas. Para minha decepção, não havia quebrada representada.

O evento era majoritariamente composto por pessoas brancas, homens e mulheres, havia negros e negras, mas a proporção era muito dispare.

O preço de correr

O preço não era um atrativo para o evento: partiam do valor de R$ 162,74 e chegavam a R$ 216,99, variando com a distância que se pretende correr (quanto maior o percurso, mais caro) e com a quantidade de itens que você escolhe para o seu kit, como é praxe nesses eventos.

Os kits podem conter blusas, fones de ouvido, camiseta, bolsa térmica, entre outros mimos. Optei por um kit promocional chamado “aquecimento” cujo valor final com as taxas ficou em R$ 203,94, quase 20% do salário mínimo atual (R$1.100).

Fiz minha prova com um tênis de R$ 250, um calção de R$ 30 e camiseta da competição que todos tinham direito pela inscrição.

Mas, como em todo esporte, existem as diferenças de materiais e isso influi diretamente no valor. A Meia Maratona de São Paulo foi um desfile de tênis hiper-caros e relógios ultramodernos.

Quem corre reconhece os produtos e me parece que esse pode ser um outro marcador de que as classes sociais presentes na meia maratona não era das camadas menos abastadas da cidade.

Num cenário de alta da inflação e aumento do números de famílias vivendo com até um salário mínimo, esse valor por si só já é um fator excludente, mas não único.

Enquanto corria, continuava me perguntando “cadê as quebradas?”.

Partiu

Sem identificar equipes das periferias e com pouca diversidade racial entre os competidores, iniciei a corrida bem atrás, evitando aglomeração, de máscara e com Baianasystem (conjunto musical baiano) no volume máximo, seria essa minha trilha sonora até o fim.

Acionei o aplicativo de corrida no celular e assim que senti que o distanciamento estava aceitável tirei a máscara e me concentrei nas passadas.

No primeiro quilômetro fiquei sem bateria do fone de ouvido do lado esquerdo, xinguei alguns palavrões em voz alta, senti falta do aplicativo de corrida me dando distâncias e meu pace (ritmo de corrida), checando o mesmo descobri que ele simplesmente fechou.

Reabri e prometi para mim que todos aqueles contratempos não tirariam meu foco na corrida e no prazer da prática esportiva.

Com a atenção voltada à corrida percebo de imediato as diferenças entre o percurso da prova e o meu local de treino.

Nas ruas do Fontalis, Sobradinho, Jd. Felicidade, Jd. São João, Jd. Corisco, Vila Zilda e Jaçanã me deparo com todo tipo de obstáculo possíveis para um corredor: ruas sem calçadas ou calçadas repletas de lixo e buracos, motoristas zangados, cachorros bravos e rápidos, ruas estreitas.

Já ali no Pacaembu não, ruas compridas, asfaltos sem buracos, nada de cachorros nem de lixo, sem contratempos. Outro panorama.

Um negro alto de dreads passa por mim e me faz sinal, incentivando minha corrida. Retribuo e o sigo de perto. A gente já havia se cumprimentado na largada, a corrida tem muito disso: a empatia entre os atletas amadores, palavras de incentivo rolam o tempo todo.

Nesse caso ainda tem o fato de se reconhecer no outro, pois também sou negro e de dreads, não tão alto é verdade, mas saber que não estar só no corre é acalentador. E lá vem a pergunta de novo “cadê a quebrada? Cadê os meus?”

Entre o quilômetro 13 e 14 uma luz reluziu em meus olhos, numa camiseta na minha frente li “Pimentas Runners”. Pimentas é um bairro da periferia de Guarulhos, na Grande São Paulo. Foi como uma brisa de ar fresco naquela corrida quente.

Acelerei, passei por ele e fiz um “joinha”, ele riu e devolveu. Já chegando no quilômetro 19, no fim da prova, outro alento, alguém passando por mim gritou para outro corredor “Bora Jabaquara”.

É isso, estamos aqui. Somos parte da Meia Maratona Internacional da Cidade de São Paulo. Quebrada chegou, somos poucos, porém, estamos aqui, no corre.

Correspondente da zona norte, André Santos relata a falta das periferias na Meia Maratona @Arquivo Pessoal

Finalizo a prova sem grandes sobressaltos. Havia treinado bastante para ela, tempo satisfatório e esforço recompensado com mais uma medalha e uma boa dose de endorfina.

No caminho de volta para a estação Marechal Deodoro do metrô, linha vermelha, faço novamente o caminho sozinho, não há mais ninguém na estação com a roupa da Meia Maratona Internacional de São Paulo.

Foi uma manhã boa e de muitas reflexões. A prática esportiva, seja ela qual for, ainda é privilégio para poucos, apesar da corrida de rua ser uma modalidade que está crescendo no Brasil e no mundo. Estima-se que no Brasil haja cerca de 5 milhões de praticantes.

Mas os grandes eventos esportivos não parecem se importar em criar acessos para todos e a centralização em bairros nobres parece ser irrevogável (entramos em contato com os organizadores sobre a disputa e quantos atletas negros haviam na prova, mas não tivemos retorno até a publicação deste texto).

Mas me mantenho no foco, concentrado em minhas passadas e ciente de que meu corre, e o corre dos que se parecem comigo, é muito mais longo que 21km.

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André Santos

Jornalista, entusiasta do carnaval, do futebol de várzea, de bares e cultivador assíduo da sua baianidade nagô! Correspondente do Jardim Fontalis desde 2017.

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