“Não enxergo mais as letras, mas ainda consigo escrever”, diz Rosa Alves de Souza, 63. Enfrentando as consequências da retirada recente de um tumor no olho direito, a dona de casa conta que já esteve na cadeia por quase 20 anos. Foi ali, entre o cinza e bege do uniforme, que ela começou a escrever cartas — que se tornaram um livro feito a mão.
Com o intuito de aconselhar a neta e registrar as memórias que só foram surgindo durante o isolamento, Rosa passou a escrever inúmeras cartas à jovem Jennifer Cerqueira, hoje com 28 anos. Parte dessas cartas se tornaram uma espécie de manual que ela costurou e tentou entregar para a neta.
“Quando juntei tudo vi que aquilo tinha se tornado um livro, e fiz questão de entregá-lo. Mas, não sei se minhas folhas se perderam na cadeia ou no Correio, sei que não chegaram até a Jennifer”, conta a moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo.
A relação entre avó e neta foi o que fez com que suportasse o tempo em que viveu em isolamento, após uma infância e adolescência difíceis, por conta do pai que tinha problemas com a bebida.
“Depois de pouco tempo ele tentou abusar da minha adolescência, me tocar, mexer comigo. E eu contava. Mas minha mãe nunca acreditou em mim, depois do primeiro abuso, me mandaram embora de casa”, relembra.
“Vivia pela raiva, mas quando estava naquele lugar, comecei a pensar e entender que aquele ódio que eu sentia tinha início e fim, por isso escrevi.”
Criada no Grajaú, Rosa viveu em vários lugares do extremo sul de São Paulo. Depois que foi expulsa de casa, ainda jovem, foi acolhida em um terreiro na região do Primavera, próximo do bairro de onde mora, “mas, infelizmente o pai do centro não era uma pessoa de luz”.
Dentro da casa, Rosa diz ter sofrido inúmeros episódios de violência sexual. “Até um dia que comecei a sangrar muito e me levaram para a Santa Casa. Lá, os médicos perceberam que foi um abuso”.
Ela tinha 16 anos e “uma revolta muito grande” por tudo que viveu. A situação levou ela a se mudar. No meio desse turbilhão, se descobriu grávida.
Ela teve ali o primeiro filho, Marcos, e teria mais um antes de ser presa. “Tiveram algumas conversas sobre maternidade no presídio e eu achava aquilo estranho porque não lembrava o que era dor de parto. Só depois de muito tempo fui entender”, revela.
Na região da Santa Efigênia, ela se envolveu com um grupo dentro do tráfico de drogas. Em 1986, aos 26 anos de idade, Rosa foi detida.
‘Me vi sem saída, comecei a ficar muito triste, deprimida, sem saber que futuro eu teria, se merecia um futuro’
Rosa Alves, moradora do Grajaú
As prisões brasileiras apresentam a quarta maior população carcerária feminina do mundo, e mais da metade dessa população são mulheres negras. “Para nós, pretos da favela mesmo, essa era a única saída. Pelo menos, era a única saída que nós enxergávamos”, relata Rosa.
Porém, foi dentro da prisão que começou a pensar mais sobre o futuro. “Não me orgulho de nada do meu passado, mas foi o único lugar que olharam para mim como ser humano, e ali tive tempo de aprender coisas que eu queria ter aprendido na escola: ler, escrever, pensar”, diz.
“Ainda sonho…”
Encarcerada, Rosa diz que o tempo passou sem ela perceber. Depois de seis anos presa, descobriu que era avó e aquilo mudou a visão dela sobre o futuro.
“A Jennifer foi um chamado de Deus para eu lembrar quem era, que era um ser humano. Só tive filhos homens e saber que minha neta era uma menina me fez querer escrever para ela tudo que tinha passado, alertar sobre abuso, sobre a maldade do mundo”, diz.
“A minha neta nunca se desfez de mim, por mais que todo mundo falasse que eu não prestava, ela me amou”.
Rosa participou do programa de Alfabetização e Inclusão Carcerária em 1988, passou a frequentar aulas dentro da cadeia, e terminou todo o período escolar do ensino médio. Escrevia todos os dias.
Jennifer nasceu em 1995 e começou a ter contato com a avó por meio da mãe, Regina Célia Pereira. Quando começou a falar, a mãe escrevia as palavras que a criança recitava para a avó até que, em 2001, a menina começou a responder as cartas.
“Eu mandava muitas fotos e assim que aprendi a escrever, respondia para ela”, diz a neta. Jennifer Cerqueira cursou pedagogia e tem se especializado em cuidado com crianças com deficiência. Ela diz que sempre enxergou a avó com olhos próprios, sem julgamentos, culpa ou medo.
“Nunca tive medo, e acho que minha mãe também fez um trabalho importante porque ela deixava termos contato, sabe?”. Durante a conversa com a Agência Mural, Rosa se emociona e afirma: “Minha neta nasceu com o dom do amor. Com ela, eu descobri o amor, o que era amar e ser amada”.
Rosa deixou a prisão em 2005 e teve mais um filho, Angel. Hoje, ela frequenta uma igreja evangélica. Diz ver muitos olhares tortos, mas que existem alguns braços acolhedores.
“Sofri racismo e preconceito pelo lugar de onde saí. Antes, eu teria raiva dessas pessoas, mas hoje tento entender. Só sinto falta de ter um trabalho, de ser útil, de ser alguém”.
A dona de casa tentou se encaixar no mercado de trabalho, mas o que recebeu foram portas fechadas. Menos de 15% de ex-detentos conseguem emprego, segundo auditoria realizada em 2022 pelo TCE-SP (Tribunal de Cortinas do Estado de São Paulo).
Sem uma casa inteira, morando no quintal da família, Rosa vive de doações, algumas faxinas e auxílio do novo governo. Esperando a cirurgia para a prótese ocular, Rosa mantém o “sonho em fazer faculdade“, e se emociona ao dizer que o livro é a única coisa que tem.
“Quando saí do presídio perguntei à Jennifer se tinha gostado do livro, porque ela nunca me respondeu, e ela disse: recebi as cartas, mas tinha livro?”.
As cartas enviadas continuam na gaveta da neta. “Perdi o todo, o livro com as páginas costuradas, mas sei que ela tem os retalhos, várias das cartas que enviei”.
Rosa não sabe se vai reescrever o livro perdido, mas tem certeza que vai “escrever enquanto respirar”. Porém, de uma forma diferente.
“Hoje não sinto aquela raiva. Reescreveria sim, mas seria outra Rosa escrevendo”