Por: Leonardo Almeida
Notícia
Publicado em 16.12.2025 | 8:16 | Alterado em 16.12.2025 | 8:17
Há quase 40 anos, o Bumba-Meu-Boi do Morro do Querosene, no Butantã, na zona oeste de São Paulo, é uma das mais vibrantes tradições maranhenses na capital. O cortejo, que atrai milhares de brincantes de todas as idades, é um símbolo da resistência da cultura popular da cidade.
“Essas manifestações foram fundamentais para a inclusão do povo preto na cultura brasileira. Não foi à toa que os nossos ancestrais deixaram essa parada para nós no Brasil”, diz o mestre Tião Carvalho, 70.
Tião é fundador do Grupo Cupuaçu, coletivo que criou raízes no Morro do Querosene em 1986 e responsável pela festa do Bumba-Meu-Boi no bairro, além de ensinar danças tradicionais maranhenses como Tambor de Crioula, Cacuriá, Caroço, Baralho.

Ciranda Mestre Penha e o boi mirim @Leonardo Almeida/Agência Mural
O Morro do Querosene é um bairro de ladeiras sinuosas e ruas calmas. Ganhou esse apelido logo no começo da ocupação da Vila Pirajussara, nome oficial do bairro.
Durante a década de 1950, a região ainda não tinha luz elétrica. Comerciantes locais vendiam querosene para às donas de casa, que saiam com garrafas vazias para armazenar o destilado, que iria iluminar o morro por meio da luz de lampiões.
A região cresceu no período em que a cidade recebeu muitos migrantes nordestinos, uma realidade de várias periferias da capital. E foram os maranhenses que vieram para o bairro que fizeram nascer a festa, para matar a saudade da terra natal.
Tudo começou no quintal de casa entre os familiares e amigos mais próximos de Tião. “Quando a festa ficava muito grande dentro de casa, a gente saia para a rua”, completa. Logo, a comunidade abraçou a festividade que chegará aos 40 anos em 2026.
A manifestação mistura religião e vontade de brincar, celebra o protagonista, o boi, por meio do encanto das danças, cantigas e fantasias.
Para Bel Carvalho,64, uma das fundadoras do Grupo Cupuaçu, um dos encantos do cortejo está no processo do evento. “Enquanto um faz a comida, outro corta a bandeirinha, uma pessoa conta uma história, então a gente troca, ri e tudo fica mais fácil, essa coletividade deixa tudo mais tranquilo”.

Cerimônia da morte do boi @Leonardo Almeida/Agência Mural
A manifestação do Bumba-Meu-Boi ocorre três vezes por ano no Morro do Querosene.
A primeira celebração, o nascimento do boi, é realizada no Sábado de Aleluia, na véspera da Páscoa; a segunda é o batizado do boi, durante as festas juninas; e a última etapa, a morte do boi, ocorre durante a primavera.
Atualmente, o cortejo reúne cerca de 3.000 pessoas pelas ruas distrito do Butantã, sem divulgação oficial, apenas no boca a boca pela comunidade.
Além disso, o cortejo luta para preservar as tradições. “Os jovens têm que prestar atenção e aprender para dar continuidade e não deixar que isso morra. Nós, os mais velhos, estamos indo e são eles que vão ficar”, ressalta Graça Reis, 69, outra fundadora do Grupo Cupuaçu.

Grupo realiza três festas durante o ano @Leonardo Almeida/Agência Mural
Com o crescimento da festa, o grupo passou a enfrentar novos desafios para realizar o cortejo. Apesar da potência cultural do coletivo, o folguedo do boi possui dificuldades financeiras para manter o cortejo em São Paulo.
O Grupo Cupuaçu organiza a festa com recursos próprios, sem auxílio de patrocinadores ou outros investimentos.
“O justo mesmo seria uma instituição como a Prefeitura de São Paulo, chegar para apoiar uma festa que já faz parte do calendário da cidade, apoiar no mínimo com som, banheiro, ambulância”, conta Henrique Menezes, 52, professor de oficinas do Grupo Cupuaçu.
Altar para São Pedro, São João (ao centro), São Marçal @Leonardo Almeida/Agência Mural
Cerimônia da morte do boi @Leonardo Almeida/Agência Mural
Fogueira para aquecer o couro do pandeirão durante a festa @Leonardo Almeida/Agência Mural
Evento é realizado na zona oeste @Leonardo Almeida/Agência Mural
Evento é realizado na zona oeste @Leonardo Almeida/Agência Mural
Evento é realizado na zona oeste e reúne moradores do bairro
Evento é realizado na zona oeste @Leonardo Almeida/Agência Mural
Evento é realizado na zona oeste @Leonardo Almeida/Agência Mural
Personagem Catirina, um dos símbolos da festa @Leonardo Almeida/Agência Mural
Para Henrique, a celebração funciona como ato de resistência em meio à desigualdade da distribuição do dinheiro para a cultura nacional. “É uma forma de manter viva uma tradição, porque o que o sistema quer é acabar com os guetos e comunidades, ou seja, higienizar”.
O grupo também enfrenta outra barreira, a desigualdade de acesso ao dinheiro para realizar atividades culturais através da Lei Rouanet, ferramenta que deveria estimular o fomento, produção, preservação e difusão cultural no Brasil.
Dados da pesquisa “Lei Rouanet e a Periferia – Um olhar estratégico para o Orçamento da Cultura e o Investimento Social Privado”, elaborada pelo Observatório Ibira 30, em parceria com a UFABC (Universidade Federal do ABC), (UFABC), revela que a distribuição do dinheiro público para a cultural é desigual no âmbito nacional e também dentro da cidade de São Paulo.
Entre 2014 e 2023, a região central da cidade de São Paulo, captou 88,86% dos recursos disponíveis, enquanto os bairros das periferias, onde reside metade da população paulista, apenas 1,38%.
Apenas o bairro de Pinheiros, concentrou 20,36% da captação de recursos da Lei Rouanet da capital paulista, cerca de R$ 1,2 bilhão. No mesmo período, as regiões norte e nordeste somadas, captaram R$ 1 bilhão.
Para Soraia Chung, doutora em Antropologia do Imaginário pela Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), as culturas tradicionais atualmente sofrem com a falta de investimento na proteção do saber tradicional.
“É necessário cuidar destas pessoas e culturas e tratá-las como referências que elas são, porque até então, elas tem sofrido de forma sistemática com um regime de exclusão”, afirma Soraia.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da SPTuris, empresa oficial do turismo na cidade de São Paulo, afirma apoiar a festa do Bumba-Meu-Boi realizada pelo Grupo Cupuaçu.
“A SPTuris esclarece que o apoio de infraestrutura para realização de eventos é feito via pedidos das secretarias, empresas públicas ou emendas de vereadores”.
A gestão diz que “associações e entidades civis precisam entrar em contato com um dos órgãos municipais (seja a Cultura, Subprefeituras, Verde, vereadores ou outros) para fazer a solicitação formal de apoio para o evento.” A partir disso o pedido é avaliado.
Jornalista, repórter do Jornal Espaço do Povo, em Paraisópolis, desde 2023. Admirador da vida e da cultura feita na periferia, especialista em direitos humanos em formação. Gosto de ler, gosto do meu cachorro e do Corinthians.
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