Ira Romão/Agência Mural
Por: Ira Romão
Notícia
Publicado em 30.11.2022 | 21:43 | Alterado em 06.12.2022 | 20:17
Em média cinco horas. Esse é o tempo que o motoboy Rubens Kalish Neto, 38, dorme por noite. Morador da Vila Pereira Barreto, em Pirituba, na zona norte da capital, Rubens mantém dupla jornada de trabalho para garantir o equilíbrio das contas da família no fim do mês.
“De segunda à sexta-feria trabalho em uma clínica das 8h às 18h. Ao sair,faço entregas [pelo aplicativo] até às 22h. Aos sábados trabalho pelo app das 15h às 22h e, às vezes, aos domingos, a partir das 18h”, relata o motoboy que até pouco tempo atrás trabalhava 12 horas seguidas em um restaurante, inclusive aos sábados.
Com essa rotina, é complicado para Rubens seguir a recomendação da Associação Brasileira do Sono de que um adulto deve dormir em média cerca de oito horas por noite sem interrupções ou perturbações.
“É o que chamamos de sono restaurador. Aquele sono que o seu corpo descansa, que você acorda com energia, com disposição e com uma sensação de relaxamento corporal e mente calma”, define a psicóloga Keila Duarte, 44, que integra o Coletivo Mulheres do Noroeste, em atuação nas regiões do Jaraguá, Brasilândia e Cachoeirinha.
“É aquele [sono] ideal que todas as pessoas deveriam ter. E sem uma medicação ativadora de sono. O natural, em que a pessoa irá conseguir descansar e dormir”, completa a também psicóloga e psicanalista Emília Ramos, 31, e integrante do coletivo Perifanálise, que atua em São Mateus, extremo leste da capital.
Emília reforça ainda que embora existam estudos que sugiram uma quantidade de horas de sono como ideal, é preciso ter a compreensão de que isso varia. “A quantidade de horas que eu consigo descansar, pode não ser a mesma quantidade que outras pessoas durmam e se sintam descansados. É bem subjetivo”, diz.
No caso de Rubens, o pouco tempo de sono tem interferido também na vida familiar, em especial na relação com o filho de oito anos. “Como chego muito tarde, tenho que dar um pouco de atenção para ele, que sente a minha falta. Mas há momentos que estou tão cansado que não tenho paciência sequer para falar e não dou a atenção que ele quer”, conta o motoboy.
“Ontem mesmo foi um dia difícil na clínica, corrido. Não consegui nem fazer entregas. Estava exausto.”
Keila explica que essa irritabilidade relatada por Rubens é um dos impactos da má qualidade do sono, já que o pouco tempo dedicado a ele dificulta que a mente se acalme.
“Um sono que não é reparador, que sobrecarrega o corpo, resulta em irritabilidade, oscilação de humor, sonolência durante o dia, falta de disposição e de energia”
Keila Duarte, 44, psicóloga
Outro impacto à saúde mental e emocional apontado pela psicóloga está relacionado à tomada de decisões, já que “o sono de qualidade auxilia no processo de calma e tranquilidade mesmo no decorrer do dia, dando o tom de um dia mais fluído.”
“Se você está com a mente descansada, você consegue compreender melhor as situações para poder tomar uma decisão mais rápida e mais eficaz a partir disso”, explica Keila.
Ela também destaca a falta de foco como um fator preponderante quando não se dorme bem. “A pessoa não consegue estar inteira nas atividades que precisa fazer, o que pode refletir também na tomada de decisões. Uma coisa vai puxando a outra”, acrescenta.
Keila alerta que “em estados mais agudos pode ser uma porta para um processo de um início de uma depressão, além do aumento dos níveis de ansiedade”.
Bordadeira autônoma há mais de 40 anos, Maria Isabel Fogaça Moraes, 57, trabalha na própria residência, no Jardim do Russo, em Perus, região noroeste da cidade.
Há cerca de duas décadas, ela produz bordados exclusivos para um ateliê de roupas de matriz africana. O ritmo da rotina de trabalho depende muito da demanda e dos prazos do serviço que ela recebe.
“Hoje mesmo chegou um serviço por volta das 13h30 e tenho que entregá-lo ainda nesta noite, até às 21h30. Então não importa a hora que comecei a trabalhar. Vou me desdobrar para cumprir o prazo, afinal preciso produzir para ter meu salário no final do mês”, afirma Bel, como é mais conhecida.
Embora haja dias em que Bel consegue trabalhar dentro do popular horário comercial, das 8h às 18h, na maioria das vezes, a carga horária durante a semana varia de 10h a 12h por dia. Aos sábados ela trabalha meio período.
“Mas quando tem muito serviço, vou até às 18h”, confessa Bel, que tem sofrido com alterações no sono que a deixam “acelerada e agitada”.
Por trabalhar com a criação de desenhos, Bel usa a mente em abundância. “Mas não descanso o suficiente para acalmá-la. Quando deito na cama, geralmente lá pela meia-noite, demoro a dormir. E quando adormeço, sonho com o serviço”, diz.
Ela conta que acorda várias vezes durante a noite, demorando a pegar no sono novamente.
A psicóloga Emília Ramos afirma que “a falta de sono é um agente estressor e que muitas vezes a pessoa poderá ficar mais intolerante”.
E faz um alerta: “as pessoas [com insônia] acabam recorrendo a medicações para induzir ao sono, o que, muitas vezes, causa uma dependência”.
A bordadeira conta que as noites mal dormidas se tornaram ainda mais intensas com a pandemia. “Durante os períodos mais graves, cheguei a passar noites em claro. Não conseguia desligar. Foi muito difícil.”
Essa realidade descrita por Bel foi identificada no estudo Viver em São Paulo: Saúde e Educação de 2021, publicado pela Rede Nossa São Paulo, que mostrou que a pandemia causou impactos no sono do paulistano. Dos entrevistados, 50% responderam ter sofrido alterações como insônia e excesso no sono.
Além disso, o estudo mostrou ainda que as mulheres foram as que mais sofreram com alterações. Já que 58% das entrevistadas afirmaram que estavam com problemas para dormir, enquanto 41% dos homens alegaram o mesmo.
Emília, que também atua na área de assistência social, diz acreditar que essa realidade vivida pelos trabalhadores periféricos, em um contexto geral, se dá pela “incerteza de manter um emprego e a alimentação, que são fatores que acabam tirando o sono das famílias”.
“Principalmente das mulheres, que é o público que eu mais escuto”, acrescenta.
Ataciana Mota da Silva, 41, moradora de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, é outra trabalhadora que sofre com distúrbios que prejudicam a qualidade do sono. Ela é vigilante em uma ETEC (Escola Técnica Estadual), em Perus, cumprindo uma escala de 12h por 36h, o que significa que trabalha um dia sim e outro não.
“Trabalho das 6h às 18h e sou dona de casa nas horas de folga. Ainda estudo no período noturno. Curso técnico em Recursos Humanos no CEU (Centro Educacional Unificado) Perus”, conta.
A vigilante costuma dormir depois da meia-noite e levanta por volta das 4h30.
“Mesmo quando estou de folga, durmo essa média de quatro horas e meia por noite. Não consigo estender”
Ataciana Mota da Silva, 41, vigilante
Ataciana diz que costuma ter um sono “pesado”. “Quando consigo desligar, durmo direto até a hora de levantar. Mas, às vezes, tenho dificuldade de desligar, pois fico pensando nas tarefas do dia seguinte.”
Durante o dia, Ataciana sente as consequências das noites mal dormidas. “É como se diz por aí: têm dias que parece que está só meu corpo ali, minha alma não, de tanto cansaço.”
“Já tive dias de me sentir tão triste pelo cansaço que cheguei a pensar em desistir, por acreditar que não daria conta”, revela.
A psicóloga Rosimeire Bussola, 35, que também integra o grupo Perifanálise e atua na área da saúde pública, chama a atenção para os impactos quando essa rotina de poucas horas de sono se estende por muitos anos. Já que, dentre tantas coisas, essa rotina pode conduzir a quadros de insônia, que Rosimeire diz ser queixas comuns nos serviços de saúde e ainda gerar a busca por medicações de tratamento.
“Levando a uma medicalização de uma problemática que não deveria ser necessariamente a insônia, mas o prejuízo causado pela condição que a população periférica é submetida”, destaca.
“Há também o aspecto da solidão, como um fator gerador de angústia e ansiedade, que quando vividos corriqueiramente perturbam o sono”, acrescenta a psicóloga.
Sobre como reduzir esses impactos, Rosimeire diz que “não aconselharia diretamente ao trabalhador, pois não é individualmente que se resolve essa problemática gerada pela maneira como a sociedade é organizada economicamente”.
Rosimeire defende a implementação de políticas públicas que garanta a população periférica espaços de esporte, cultura, lazer e moradia digna, além de salários justos e condições de trabalhos sem precariedade.
“Para um sono de qualidade é necessário que os direitos básicos de uma pessoa sejam garantidos, não se dorme bem com um cotidiano cheio de incertezas”
Rosimeire Bussola, 35, psicóloga
“Os relatos na periferia de insônia ou de outros quadros de sofrimento mental quase sempre vêm acompanhados das vulnerabilidades sociais. E isso deve ser um sinal de alerta. Melhora-se o sono garantindo melhores condições também para o dormir”, conclui.
Jornalista, fotojornalista e apresentadora de podcast. Atuou em comunicação corporativa. Já participou de diferentes projetos como repórter, fotógrafa, verificadora de notícias falsas e enganosas. Foi uma das apresentadoras do ‘Em Quarentena” e da série sobre mobilidade nas periferias. Ama ouvir histórias, dançar, karaokê e poledance. Correspondente de Perus desde 2018.
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