Glória Maria/Agência Mural
Por: Glória Maria
Notícia
Publicado em 10.01.2025 | 11:47 | Alterado em 10.01.2025 | 11:47
Aos 11 anos, Gabriel Silva*, morador de Paraisópolis, sonha em aprender a ler. Aluno da rede municipal de São Paulo, Gabriel é uma das muitas crianças cuja alfabetização foi prejudicada pela pandemia de Covid-19.
Durante o período de ensino remoto, ele usou um tablet fornecido pela prefeitura, com acesso à internet. No entanto, para a mãe dele, Maria da Silva*, 41, o dispositivo não foi uma solução prática. “Não conseguia ajudar nas lições. Sou empregada doméstica e trabalho o dia todo fora de casa”, explica ela, mãe de outros três filhos.
“Gosto de conversar com amigos tanto em jogos como free fire como nos grupos que temos no Whatsapp. Gravo áudio ou minha irmã escreve pra mim. Meus amigos não sabem que não sei ler. Não quero que eles saibam, isso me deixaria triste”, comenta João.
“Eu sento do lado dos meus colegas e eles vão lendo, finjo que sei ler, e assim vou indo. Também tenho medo deles descobrirem que não sei ler e virar piada por conta disso”, afirma.
Gabriel não é um caso isolado pela cidade e indica os desafios de quem estuda nas periferias e o funcionamento das aulas de reforço oferecidas pela rede municipal.
Procurada, a prefeitura afirma que a pandemia prejudicou os alunos, mas que as aulas de recuperação trouxe resultados positivos.
De acordo com a RME (Rede Municipal de Ensino), a Provinha São Paulo, aplicada aos estudantes do 2º ano do Ensino Fundamental desde 2018, entre 80% a 90% dos alunos estão alfabetizados. Em 2023, o percentual foi de 86,9% – ou seja, ao menos 1 a cada 10 estudantes não chegaram a esse nível de aprendizado.
Outro estudo mostra dados ainda mais preocupantes. O “Índice Criança Alfabetizada 2023”, divulgado pelo MEC (Ministério da Educação) e pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) aponta que cerca de 62% das crianças da cidade de São Paulo não estão alfabetizadas na idade prevista, de 7 anos.
No entanto, as instituições apontam que os dados não podem ser comparados.
João Silva*, 13, um dos irmãos de Gabriel, também teve a alfabetização comprometida pela pandemia e enfrenta dificuldades semelhantes. “No grupo de amigos do WhatsApp, quando há conversas escritas, ele pede para a irmã mais velha ler e responder por ele. Isso o deixa mal”, conta Maria.
Em 2023, Maria recebeu um comunicado da escola para que Gabriel participasse de aulas de reforço no contraturno. O reforço seria oferecido duas vezes por semana, com uma hora de duração. No entanto, Gabriel não conseguiu frequentar as aulas naquele ano, pois Maria não tinha como levá-lo.
Em 2024, Gabriel começou a participar das aulas, mas ainda com resistência. “Ele sente vergonha de não saber ler, e isso o desmotiva a ir à escola”, desabafa Maria.
O reforço escolar que Gabriel e João participam é o Projeto de Recuperação de Aprendizagem, uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo para apoiar estudantes que tiveram a alfabetização comprometida pela pandemia.
Por meio desse programa, a prefeitura oferece aulas no contraturno escolar, com foco em reforçar conteúdos como Português, Matemática e outras disciplinas.
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, as atividades são conduzidas por professores designados para esse projeto e incluem materiais didáticos específicos. A meta é que, ao final do 2º ano do ensino fundamental, todas as crianças estejam alfabetizadas.
Apesar da ação nas escolas, Rosângela Santos*, 35, coordenadora pedagógica da rede municipal, comenta que todos os ciclos precisam de reforço, não apenas os alunos do 2º ano.
“A pandemia trouxe uma grande lacuna no aprendizado. Além disso, o tablet não funcionou em muitas regiões por conta da falta de internet, e muitos alunos não souberam usá-lo. A socialização, que é essencial para o aprendizado, também foi prejudicada”, explica.
Ela também ressalta a falta de professores disponíveis para atuar no contraturno.
‘Temos materiais didáticos excelentes, mas falta mão de obra. Não é porque o professor não quer, é porque ele já tem a carga completa‘
Rosângela, educadora
A coordenadora diz acreditar que a Secretaria Municipal de Educação precisa contratar professores especializados para o reforço escolar, não apenas para o 2º ano, mas para todos os anos, já que há um grande reflexo das dificuldades de aprendizado. “Precisamos de professores que saibam alfabetizar”, conclui.
João participa das aulas de reforço, mas enfrenta dificuldades em diversas disciplinas. “Ele comenta sobre português e matemática, mas as barreiras estão em todas as matérias”, diz Maria.
Apesar das dificuldades, Maria tenta estimular os filhos. Trabalhando na casa de professores, ela ganhou gibis e os leva para Gabriel e João.
‘Na viela onde moramos, eles folheiam os gibis, observam as imagens e tentam imaginar as falas dos personagens. É uma maneira de manter o sonho de aprender vivo, mesmo com todos os desafios‘
Maria, mãe de Gabriel e João
Esse estímulo pode ser fundamental, aponta Fernanda Renner, 47, professora alfabetizadora e coordenadora pedagógica do Pró-Saber São Paulo, ONG que atua em Paraisópolis e que contabiliza já ter atendido 18 mil crianças desde a fundação em 2003.
“O que eu observo é um pouco contato com leitura, com literatura, com o hábito de ler todo dia, com a familiaridade com o livro enquanto objeto. Não porque as crianças não gostem, mas por falta de acesso mesmo”, explica.
Para Fernanda, a alfabetização não é apenas uma habilidade técnica, mas um direito essencial de cidadania, que deveria ser garantido a todas as crianças.
De acordo com a pedagoga, a pandemia da Covid-19 agravou ainda mais esse cenário. Crianças que deveriam ser alfabetizadas entre 2020 e 2021, nos anos iniciais do ensino fundamental, sofreram com a interrupção das aulas presenciais e a falta de condições para o ensino remoto.
“Essas crianças, que hoje têm 10, 11 anos, estavam naquele momento crucial da alfabetização, mas tiveram seu aprendizado completamente deixado de lado”, conta Fernanda. “Hoje, quatro anos depois, ainda encontram dificuldades em compreender o sistema de escrita, não dominam o sistema alfabético e não conseguem ler de forma convencional.”
A solução, segundo Fernanda, passa pela implementação de políticas públicas que identifiquem as crianças em atraso e invistam na formação de professores, na infraestrutura escolar e em uma educação mais inclusiva. “A alfabetização vai além de ensinar letras e sílabas; é uma ferramenta de transformação social e construção de cidadania”, enfatiza.
Moradora de Paraisópolis, jornalista, produtora audiovisual e co-fundadora do estúdio 7 Notas, espaço que acolhe artistas locais e movimentando artes
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para [email protected]