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Agência de Jornalismo das periferias

Léu Britto/Agência Mural

Por: Cleberson Santos

Notícia

Publicado em 29.05.2024 | 14:16 | Alterado em 29.05.2024 | 19:27

Tempo de leitura: 9 min(s)

Luiz Henrique Almeida, 18, não pensava que seria possível estudar na USP (Universidade de São Paulo). Morador do bairro Chácara dos Amigos, em Embu Guaçu, na Grande São Paulo, ele se tornou em 2024 o primeiro da família a conseguir uma vaga no ensino superior e no tradicional curso de direito.

“Nem passava pela minha cabeça que eu passaria. Todos ficaram muito felizes com a notícia, teve gente que até chorou”, conta Luiz.

O estudante conseguiu a aprovação por meio do Provão Paulista e foi o primeiro aluno da Rede Ubuntu, em mais de 10 anos de atuação do cursinho, a conseguir entrar no curso. Ele é um exemplo de como a atuação desse e de outros cursinhos populares têm sido fundamental para garantir o acesso de centenas de alunos das periferias.

É o que mostra um levantamento exclusivo da Agência Mural com oito cursinhos populares de sete cidades da Grande São Paulo. Ao menos, 224 alunos participantes dessas atividades se matricularam no começo de 2024. 155 deles em universidades públicas e 69 em instituições privadas por meio das bolsas de estudo do Prouni (Programa Universidade para Todos).

Alunos aprovados da Rede Ubuntu durante aulão inaugural para os pré-inscritos de 2024 @Ana Carolina Nilton / Rede Ubuntu

Somente a Rede Ubuntu contabilizou 94 aprovados, cerca de 65% deles no ensino superior público, como a USP (Universidade de São Paulo), a Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e a Fatec. A rede atua nas regiões do Capão Redondo, Jardim Ângela, na zona sul da capital, e Itapecerica da Serra, na região metropolitana.

Ao todo, a Agência Mural entrou em contato com 19 cursinhos populares, porém alguns não responderam ao contato, ainda não possuíam dados a respeito de aprovações em 2024 ou optaram por não participar da pesquisa.

Cursinhos populares que participaram do levantamento
Rede Ubuntu Educação Popular Cinco polos nas regiões do Capão Redondo, Jardim Ângela (zona sul de São Paulo) e Jardim Jacira (Itapecerica da Serra) 94 alunos aprovados
Cursinho Chico Mendes Vila São Jorge (Suzano) 38 alunos aprovados
Cursinho Popular Maio de 68 Centro (Mogi das Cruzes) 28 alunos aprovados
Cursinho Comunitário Pimentas Pimentas (Guarulhos) 21 alunos aprovados
Cursinho Comunitário A-SOL Jardim São Francisco (Guarulhos) 12 alunos aprovados
Rede Emancipa Responderam à pesquisa os núcleos Diadema, Santana (ZN), Grajaú (ZS) e Rio Pequeno (ZO), porém a Rede está presente em outras regiões 12 alunos aprovados
Curso Popular Mafalda Carrão (zona leste) 11 alunos aprovados
Cursinho Popular Lima Barreto Macedo (Guarulhos) 8 alunos aprovados

Também é preciso levar em consideração que a apuração foi feita entre o fim de fevereiro e a primeira quinzena de março, período em que ainda há listas de espera em diversas instituições. Logo, o número de alunos que saíram de iniciativas periféricas para a universidade pode ser bem maior que o coletado pela reportagem.

O QUE SÃO CURSINHOS POPULARES?

Os cursinhos populares têm o compromisso de oferecer apoio aos alunos de escolas públicas que tentam entrar numa universidade após o término do ensino médio.

Esses cursinhos funcionam de forma diferente dos cursinhos tradicionais particulares. Ao invés de aulas diárias, as aulas gratuitas costumam ser realizadas aos sábados, levando em conta que muitos alunos estudam e trabalham durante a semana.

Também sai de cena o aspecto da competição, em que cada um dentro da sala é um concorrente em potencial. As aulas são marcadas pela colaboração, pelo desenvolvimento da consciência de classe e pela perspectiva de que estes alunos estarão ocupando um espaço que não foi desenvolvido para eles.

Mais periferias na USP

Última universidade estadual a aderir à política de cotas, a USP (Universidade de São Paulo) está vendo crescer, aos poucos, o número de alunos vindos da escola pública. No ano de 2023 foram 5.714 aprovados, representando cerca de 54% dos ingressantes daquele vestibular.

Apesar de a instituição ainda não ter os números consolidados em 2024, é bem possível que a marca seja batida, principalmente por conta do novo Provão Paulista. 1.500 vagas foram destinadas a esta nova forma de ingresso iniciada no fim do ano passado e é exclusiva para os alunos do terceiro ano da rede estadual de ensino.

Somando todos os cursinhos que participaram do levantamento da Mural, 47 dos 224 aprovados conseguiram entrar na USP, de longe a favorita dos alunos.

Instituições com mais aprovados entre os cursinhos pesquisados pela Agência Mural
USP (Universidade de São Paulo) 47 aprovados
FATEC (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo) 23 aprovados
UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) 21 aprovados
UNESP (Universidade Estadual de São Paulo) 14 aprovados
IFSP (Instituto Federal de São Paulo) 14 aprovados

“A USP está ciente de que há uma diferença de raça e de gênero na universidade hoje que não é vista há 30 anos”, afirma Ana Carolina Carvalho, 25, coordenadora do Polo Alan Soares, da Rede Ubuntu, no bairro Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra.

Para ela, há uma grande mudança no perfil, mas que ainda é tímida e precisa se consolidar até ter 50% de alunos negros e das periferias.

‘Há 30 anos isso não era nem pensado. As imagens dos formandos da USP só tem homem e branco. A gente está mudando esse jogo, mas eu não acho que a gente vai conseguir colher esses frutos agora’

Ana Carolina Carvalho, educadora do Polo Alan Soares

De acordo com o anuário estatístico da USP, em 2022 havia um total de 13.651 alunos que se autodeclaravam PPI (pretos, pardos e indígenas) nos cursos de graduação. Esse número representa menos da metade do total de alunos autodeclarados brancos (38.549) e 22% do total de matriculados na instituição.

Formada em Relações Públicas, Ana Carolina entrou na USP em 2017 e reconhece que, apesar de o cenário hoje ser diferente de quando matriculou-se, o ambiente universitário ainda é pouco receptivo aos alunos de escolas públicas. “Eu falo para os alunos que me senti muito sozinha lá”.

“Era muito discrepante a realidade, a diferença de experiências, de vivências e tudo mais. A USP é uma escola de pesquisa, ela quer resultados, os melhores acadêmicos. E a gente não tem um inglês, uma viagem para o exterior. Essas coisas vão tornar o ambiente um pouco mais difícil de se fazer presente”, afirma.

Segundo ela, o que ajuda os alunos que iniciam essa nova realidade é justamente entrar em contato com os “veteranos” que também possuem origem no ensino público e que, além de transformar as vivências da universidade, já tem cobrado por mais políticas de permanência.

“Às vezes a gente luta tanto para permanecer que é violento, é um teste aos nossos limites, sejam eles físicos, emocionais ou psicológicos. O trabalho tem que ser sempre de uma permanência saudável, que seja justa com a gente, com os nossos sonhos”, complementa Ana.

Aula do Polo Alan Soares da Rede Ubuntu, que fica no Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra @Ana Carolina Nilton / Rede Ubuntu

Luiz, aluno que abre esta reportagem, também sentiu essa questão do “não pertencimento” no começo das aulas de direito. “É surreal, ver o nome de presidentes na parede, estátuas de pessoas importantes. E é algo que não dá um sentimento de pertencimento, porque é algo muito elitizado. Tem pessoas da elite lá, mesmo com política de cotas.”

FACULDADE CRIADA PARA AS ELITES

Localizada no Largo São Francisco, no centro da capital paulista, a Faculdade de Direito da USP foi fundada em 11 de agosto de 1827 (mais de um século antes da fundação da própria USP), sendo o curso de direito mais antigo do Brasil.

Por lá, formaram-se 12 dos 38 presidentes da República: Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves, Afonso Pena, Venceslau Brás, Delfim Moreira, Washington Luís, Júlio Prestes, José Linhares, Nereu Ramos, Jânio Quadros e Michel Temer.

Para ajudar com essa questão do acolhimento, Luiz conta que aproximou-se de outros novos alunos que, assim como ele, também entraram na faculdade por meio do Provão Paulista.

O estudante Luiz, de Embu Guaçu, com a camiseta da rede Ubuntu na Faculdade de Direito da USP @Léu Britto/Agência Mural

Ao todo foram 15.369 vagas distribuídas pelo Provão Paulista para as cinco instituições estaduais de ensino de São Paulo: USP, Unicamp, Unesp, Univesp e Fatec. Todos os alunos do terceiro ano do ensino médio em 2023 foram inscritos na prova.

“Foi uma prova que achei bem tranquila, por ser parecida com a da Unesp, ser da mesma fundação”, conta Luiz, destacando o apoio que recebeu do cursinho durante o ano passado.

‘Tinha muita coisa que não tinha conhecimento e [o cursinho] ajudou demais. Me deixaram mais tranquilo em relação a não ficar pensando no futuro, a não ver a faculdade como uma obrigação, que eu poderia entrar a qualquer momento da vida’

Luiz, estudante de direito na USP

Ciências sociais: a favorita dos alunos

Os 224 alunos aprovados pelos oito cursinhos que participaram do levantemento da Agência Mural distribuíram-se por 76 cursos diferentes.

Caru Mauricio de Lima, 21, foi aprovado em ciências sociais, curso que concentra a maior parte dos universitários do levantamento. Ex-morador de Mogi da Cruzes, no bairro Brás Cubas, ele frequentava o cursinho Maio de 68 e passou na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) por meio do SISU (Sistema de Seleção Unificado). Desde março, Caru está vivendo na capital fluminense.

“É um curso que me identifico muito por ser uma pessoa preta e trans, por estar em um lugar de marginalização da sociedade e questionar a sociedade”, afirma o calouro.


Os cursos “favoritos” dos alunos de cursinhos populares
Ciências Sociais15 aprovados
Análise e Desenvolvimento de Sistemas14 aprovados
História13 aprovados
Pedagogia10 aprovados
Gestão Empresarial9 aprovados
Direito8 aprovados
Administração / Letras / Psicologia7 aprovados
Bacharelado em Ciência e Tecnologia / Enfermagem / Filosofia6 aprovados
Ciências Biológicas / Economia / Geografia5 aprovados

Ele conta que pensou em vários cursos, mas o cursinho Maio de 68 o ajudou a decidir pela profissão. Hoje, ele pensa em “também ser professor e mudar a vida de alguém”, afirma Caru, que não tinha aulas de sociologia durante o ensino médio.

Polo Alan Soares fica instalado nas salas de uma paróquia no bairro Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra @Ana Carolina Nilton / Rede Ubuntu

Cientista social, Daniela Lira, 27, observa com alegria esse “favoritismo” do curso entre os alunos. Moradora da periferia de Santo André, na Grande São Paulo, ela é mestre em ciências sociais com foco em educação e políticas públicas.

Assim como relatado por Caru, Daniela diz acreditar que o papel político desempenhado pelos cursinhos instiga os alunos a procurar por mais informações sobre a realidade em que vivem.

‘O curso de ciências sociais se torna uma via de aprofundar uma percepção que ela está acessando de autoconhecimento e atuação coletiva’

Daniela Lira, cientista social

Daniela destaca, porém, que há um “outro lado da moeda”. Para ela, a predominância dos cursos de licenciatura, como é o caso também de história, pedagogia e letras, pode indicar também uma questão de “autoestima intelectual”, além da chance de conseguir a vaga.

“Fiz cursinho popular, e eu lembro que já me sentia das humanidades, mas uma coisa que pesou na minha escolha foi qual curso que eu tinha maior chance de passar”, conta, citando que cursos como o de direito tem uma concorrência maior.

Assim como Luiz fez ao entrar na USP, Caru também se aproximou de outros alunos de origem periférica para facilitar na integração, além de um grupo de pessoas trans da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“Pelo menos no meu curso, não me senti tão fora da bolha, porque tem bastante pessoa preta, tem bastante pessoa trans, tem bastante pessoa pobre também. Então eu não tô tão fora da bolha, eu me senti bem incluído”.

Roda de Conversa com alunos do cursinho @Alan Soares/ Divulgação

Para a Daniela Lira, um dos fatores interessantes da entrada de mais pessoas periféricas no curso de ciências sociais é a possibilidade de questionar a leitura feita no curso, ainda muito pautada por autores brancos, e ver mais pesquisas sobre os territórios sendo feitas por pessoas que realmente fazem parte dele.

“Quando uma pessoa periférica estuda, volta para o seu território, entende a sociabilidade, ela olha de uma outra ótica e talvez até desempenha alguma mudança naquele espaço”, afirma.

Voltar ao próprio território e aplicar o que aprendeu é justamente uma das vontades de Cairu.

‘O que estou querendo muito fazer é dar aula e pretendo ir em algum cursinho popular atingir a vida de outras pessoas periféricas como eles atingiram a minha’

Cairu, estudante de ciências sociais

Contraponto

Entre os cursinhos com quem a reportagem conseguiu entrar em contato, o único que optou por não divulgar os números de aprovados foi a Uneafro. A organização, fundada por Frei David em 2010, conta com 18 núcleos espalhados pela Grande São Paulo, além de um núcleo online com mais de 800 alunos.

Adriana Moreira, coordenadora de equidade racial e educação da Uneafro, explicou à reportagem que a organização não contabiliza a quantidade de aprovados por acreditar que isso parte de um pressuposto meritocrático.

“É muito injusto a gente querer comparar algo que é incomparável, é quase imensurável o tamanho das desigualdades. Por isso que a Uneafro faz a opção de não divulgar”, afirma Adriana.

‘Não dá para mensurar o papel do cursinho popular a partir dessa métrica de quantos passaram e quantos não passaram. Isso é reduzir o papel do cursinho popular’

Adriana Moreira, coordenadora de equidade racial e educação da Uneafro

Adriana destaca também que o trabalho feito pelos cursinhos populares vai além da aprovação no ensino superior. Ela cita o exemplo de pessoas que por algum motivo não puderam terminar o ensino médio e procuraram a Educafro para receber apoio para o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), ou por conta das atividades culturais, como saraus, ou de formação política.

Alunos do cursinho da Rede Ubuntu @Ana Carolina Nilton / Rede Ubuntu

Já para a Ana Carolina, da Rede Ubuntu, divulgar os resultados que os alunos alcançam serve como prestação de contas aos locais que eles ocupam e também ajuda para obter formas de financiamento.

“É um registro importante. Os números ajudam a tornar o nosso trabalho palpável, para a paróquia que cede o espaço para a gente saber o que estamos fazendo o ano inteiro, para parceiros que doam, para se inscrever em editais”.

Ana Carolina conta que o grande sonho dela é que não haja necessidade de os cursinhos populares existirem no futuro, pois isso significaria que o país conseguiu valorizar a educação e avançar em políticas de acesso ao ensino superior.

Adriana cita ainda que os cursinhos servem de inspiração a políticas públicas, a mostrar para o estado um modelo diferente que essas iniciativas desenvolveram e que pode ser usado no ensino público. “A gente pode difundir e fortalecer a ideia de que os estudantes podem entrar na universidade, podem fazer escolas técnicas, para que o trabalho não seja só aquilo que gera subsistência no imediato”, completa.

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Cleberson Santos

Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.

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