Simony Maia/Agência Mural
Por: João Vitor Carneiro | Simony Maia
Notícia
Publicado em 22.10.2025 | 17:43 | Alterado em 22.10.2025 | 18:01
A dona de casa Karina Jesus, 27, cresceu na região da rua Novo Habitat, em Diadema, no ABC Paulista. Ela lembra com carinho da infância tranquila brincando na rua, e da casa que conseguiu comprar, por meio de um programa feito pela prefeitura.
Além do desafio de conseguir renda e cuidar da família, ela começou a conviver com outro problema nos últimos dias. Passou a ser alvo de xingamentos até mesmo quando sai no portão.
“Meu pai foi um dos primeiros a chegar aqui. Ele construiu a vida dele aqui. Agora tem gente que vem na rua só para ficar falando comentários ofensivos”, lamenta.

Placa da Rua Habitat, local alvo de ofensas nas redes sociais @João Vitor Carneiro/Agência Mural
Os xingamentos começaram no começo deste mês, após uma postagem do deputado federal Nikolas Ferreira do (PL).
O vídeo que viralizou critica as mudanças promovidas pelos moradores nas construções entregues pela prefeitura das chamadas ‘casas cubo’, como são popularmente conhecidas por conta do formato.
Os moradores explicam que as construções apresentaram diversos problemas estruturais desde o início, como infiltrações, falta de privacidade e insegurança. A solução para alguns foi ampliar os imóveis que avançaram sobre as calçadas.
Após a publicação, comentários ofensivos e de que houve uma “refavelização” do local se espalharam nas redes e pelas ruas do município, sem mencionar o que levou às alterações.

Os barracos de madeira, antes da reforma feita pela prefeitura @Reprodução/Divulgação
Karina explica que a ampliação das moradias foi motivada pela preocupação com a segurança das crianças. As famílias afirmam preferir que os filhos tenham mais espaço para brincar dentro de casa, evitando os perigos da rua.
Grávida do segundo filho e mãe de uma criança de 4 anos com autismo, a dona de casa conta que a família ainda está em processo de conclusão da obra, mas precisa de dinheiro para isso.
‘Meu pai sai de casa às 4h da manhã e só volta às 19h. Ele está fazendo o melhor dele, e ainda vem gente aqui xingar. Pessoas que nem nos conhecem desejando nossa morte’
Karina, moradora de Diadema
Karina enfatiza que, ao contrário do que afirmaram muitos comentários nas redes sociais, as casas foram pagas pelos moradores. Eles puderam escolher entre as casas cubo oferecidas pela prefeitura ou apartamentos do CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano).
Para Karina, a maior surpresa foi descobrir que o responsável por iniciar o linchamento virtual foi Nikolas Ferreira. “Era um cara que tinha muita admiração. Seguia e acompanhava. Quando vi que era ele quem estava ‘macetando’ a gente, sem nem saber o nosso lado, fiquei decepcionada”, conta.
“Por que ele não passa um dia aqui para entender a nossa realidade também? Porque julgar, todo mundo julga. Até deixei de seguir ele no Instagram.”
As residências que ganharam visibilidade nas redes sociais foram inauguradas em 2018 e entregues pelo então prefeito do município, Lauro Michels do PV (Partido Verde), com recursos do Fumapis (Fundo Municipal de Apoio à Habitação de Interesse Social).
O fundo recebe dinheiro das taxas cobradas de grandes obras, como construções de imóveis. Por meio dele, o objetivo era oferecer moradias pré-definidas a partir das necessidades das famílias.
Contudo, na prática, a proposta não se concretizou conforme o planejado. “Quando entregaram essas casas, foram ‘mil maravilhas’, mas por dentro só a gente sabe o que sofreu. Na primeira chuva entrou água em todas as casas, e perdemos muitas coisas”, relata Thaís Lima, 27, dona de casa e moradora da região desde que nasceu.

Casas cubos em 2018, quando foram entregues pela prefeitura @Reprodução/Divulgação
Mãe de quatro filhos, Thaís explica que as ampliações nas casas surgiram da necessidade de oferecer mais conforto às crianças. “Depois de quase seis anos que fizemos as mudanças, as pessoas resolveram ‘cair matando’ em cima da gente”, desabafa.
Ela afirma ter ficado chateada com os comentários ofensivos que circulam nas redes.
‘Ninguém sabe da nossa realidade. A nossa dignidade vem da gente que levanta cedo para trabalhar. A estrutura da casa não define quem a gente é de verdade’
Thaís, moradora de Diadema
Para o ex-prefeito Lauro Michels, não se pode associar o tipo de moradia ao caráter de uma pessoa. “Não admito falar de pessoas sem as conhecer primeiro, ver suas reais necessidades. Morar em barracos como os da foto antiga, no verão, é um forno, um micro-ondas. No inverno, é um freezer.”
Ele afirma que, na época da construção das casas, houve discussão com os moradores, com participação da assistência social e da Secretaria de Habitação, para que as moradias atendessem às necessidades das famílias naquele momento.
“Atualmente está tudo generalizado, mas muitas pessoas necessitam de ajuda, muitas precisam de moradia”, conclui.
Desde a viralização do caso, o arquiteto e mestre em planejamento urbano Alex Sartori, 38, publicou vídeos em seu perfil do Tik Tok, no qual critica a criminalização das pessoas pobres e periféricas, como aconteceu na rua Novo Habitat.
Formado em arquitetura e urbanismo pela USP (Universidade de São Paulo), Sartori explica que o modelo entregue pela prefeitura em 2018 é insuficiente para famílias compostas por adultos e crianças.
Segundo ele, essas moradias são projetadas com um orçamento muito limitado, desconsiderando diversas necessidades da população atendida. “O resultado tende a ser casas padronizadas que não têm relação com as necessidades reais das famílias”, explica.
‘Muitas pessoas usam a moradia como local de produção para complementar a renda ou até para ter sua renda completa, e o espaço, muitas vezes, não é suficiente para isso’
Alex Sartori, arquiteto e urbanista
Sartori destaca que o projeto das casas, as dimensões e localizações, são definidos a partir de uma combinação entre as exigências legais e os limites orçamentários impostos às obras públicas.

As casas dos moradores após as mudanças feitas para ampliar a moradia @Simony Maia/Agência Mural
Para o arquiteto, não existe um modelo ideal de habitação. “Um plano de habitação não deve se restringir à casa. O melhor cenário é pensar em políticas articuladas de economia, emprego e renda, construção de equipamentos públicos e transporte”, afirma.
Ele diz ainda que os comentários que viralizaram nas redes sociais refletem um preconceito já existente na sociedade, um desrespeito não apenas com os moradores da Rua Novo Habitat, mas com a maior parte da população brasileira que vive em condições semelhantes.
“A mensagem principal não é sobre casas ou sobre a cidade, mas sobre a necessidade de impor uma determinada ordem sobre um povo que, para essas pessoas, é visto como a causa dos problemas urbanos”, argumenta.
“É um reforço ideológico que justifica a violência que o povo das favelas e periferias já sofre e uma autorização para aumentar ainda mais essa violência.”
Jornalista formado pela PUC-SP. Nascido e criado em Diadema. Criador da web serie "Marcados pelo Trabalho". Entusiasta de cinema e são-paulino.
Jornalista que se aventura pelo universo das redes sociais falando sobre política, cultura e entretenimento. Em busca de sempre vivenciar novas trocas para contar boas histórias. Correspondente de Diadema desde 2023.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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