Em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, a chuva e o risco de enchentes ou deslizamentos fazem parte do imaginário popular. Às margens do Juqueri, a cidade alaga nas épocas chuvosas com a cheia do rio, principalmente no centro. Porém, os impactos continuam mesmo fora da época chuvosa.
Na memória mais recente, predomina março de 2016. Entre os dias 10 e 11 daquele mês, a cidade recebeu entre 140 e 150 mm de chuva, causando alagamentos que foram agravados pela abertura das comportas da represa Paiva Castro, que corria risco de transbordamento.
Claudio Gonçalves e Valdete Alves Araújo, moradores da Vila Nossa Senhora de Fátima, mostram nos muros a marca deixada pela água de uma das enchentes, a mais de um metro de altura, enquanto comentam sobre o bairro. Valdete desabafa que o local só alaga quando a barragem é aberta.
Trator faz limpeza no centro de Franco da Rocha, em enchente dos últimos anos @Prefeitura de Franco da Rocha
A represa Paiva Castro, inaugurada em 1972, faz parte do Sistema Cantareira e é administrada pela Sabesp. As comportas são abertas quando há um risco para a integridade da barragem. Nesse caso, é quando o nível da água atinge 745,5 metros.
Para os comerciantes do centro do município, as enchentes significam prejuízo recorrente. “Faz 26 anos que eu estou aqui em Franco da Rocha e já passei por mais de 40 enchentes”, afirma o empresário Marcelio Gonçalves, 51, que vendeu o antigo ponto de vendas pelo problema das cheias.
A atual loja de Marcelio, assim como muitas outras no centro, tem o piso mais elevado em relação à calçada para tentar conter a entrada da água.
A população se mobiliza para ajudar uns aos outros por meio de grupos de mensagens para compartilhamento de informações e, em casos mais extremos, resgates e acolhimento.
Marcelio mostra um dos muitos itens perdidos no alagamento ocorrido no começo de fevereiro deste ano @Henrique Giacomin/Divulgação
Os impactos das enchentes são diversos: abrangem desde a mudança na rota do transporte público, até o desmoronamento de casas. São questões que não se resolvem quando a água baixa e que trazem consequências ao bem-estar das pessoas. “Pode afetar muito a saúde”, reforça Elaine Terron, diretora de defesa civil franco-rochense.
Adoecimento do corpo e da mente
As principais complicações de saúde acarretadas pelas enchentes derivam do contato com água contaminada, seja diretamente ou por meio de alimentos mal higienizados. Os quadros mais comuns são a leptospirose, hepatite A, o tétano e distúrbios gastrointestinais.
Infecções dermatológicas também são frequentes. Marcelio Gonçalves revela a dificuldade em se proteger destes riscos, uma vez que “quando enche o rio, as tampas dos bueiros sobem” e afirmou já ter tido infecção bacteriana nos pés e outros quadros relacionados.
A questão dos cuidados com a água e esgoto é uma preocupação constante na região. Terron, diretora da Defesa Civil, aponta que as águas sujas dos bueiros desembocam justamente nos cursos de água usados no abastecimento da região. “A gente diz ‘olha, está transparente a água, não tem sabor, está tudo bem’, mas será que está tudo bem?”.
Além dos desdobramentos para a saúde física, eventos como as enchentes sobrecarregam a esfera mental da população.
Para Caique Lima, 17, há um medo constante em relação às possíveis consequências da próxima chuva. “Sempre que chove, o pessoal já desmarca compromisso”, pontua o estudante.
A moradora Valdete Alves diz que, mesmo estando “acostumados”, os episódios “abalam o psicológico”, por conta da perda de entes queridos e animais de estimação.
Placa que indica área de risco em Franco da Rocha @Henrique Giacomin/Divulgação
Além disso, perder os bens materiais que conseguiram com esforço de anos é visto como uma “humilhação”.
‘A gente constrói, constrói as coisas e perde’
Marcelio Gonçalves, comerciante da região
No pós-tragédia, o sentimento de alerta se impõe. Cláudio e Valdete dizem que “qualquer chuvinha” os faz sentir medo.
Isabela Oliveira, gestora de projetos do centro de estudos em sustentabilidade da FGV (Fundação Getúlio Vargas), é de Minas Gerais e já passou por episódios de enchentes. Apesar da distância geográfica, as experiências são próximas. “É uma preocupação frequente, constante, que não deixa a gente dormir.”
Essa vigilância contínua gera exaustão, como apontado por Elaine Terron, envolvida pessoalmente e profissionalmente com as enchentes. “Quando você está muito tempo em alerta, o seu mental cansa, seu emocional cansa”.
Região central após o alagamento @Prefeitura de Franco da Rocha
Identificar para cuidar
A psicóloga Aline Teixeira explica que o estado de alerta é um dos sinais do estresse pós-traumático. Outros sintomas do quadro citados pela doutora são: alterações de apetite e sono; pesadelos recorrentes; reações intensas diante de gatilhos (sons, cheiros e locais) e aumento do uso de substâncias como drogas e álcool.
Segundo a doutora, no caso dos cidadãos franco-rochenses, a repetição dos ocorridos pode acentuar os impactos, configurando um quadro de trauma cumulativo. Nesse estágio, é comum que as pessoas apresentem sobressaltos; irritabilidade; explosões emocionais; oscilações intensas de humor; sentimentos de estar “fora do corpo”, como se a vida fosse um filme; lapsos de memória e dificuldade em se conectar com o presente.
O contexto das mudanças climáticas fez surgir o termo ecoansiedade, que expressa justamente esses desdobramentos psicológicos decorrentes de problemáticas ambientais.
Aline Teixeira explica que, embora ainda não esteja classificada como um transtorno mental nos manuais diagnósticos, a ecoansiedade é uma resposta emocional legítima a uma realidade preocupante.
Para a psicóloga, o SUS ainda oferece apoio psicológico precário para tragédias como as enchentes, que exigem um preparo específico dos profissionais: “É uma situação que pede intervenções mais rápidas, diferente de um processo terapêutico comum”, afirma.
Segundo nota da Prefeitura, a rede municipal de saúde disponibiliza atendimento psicológico à população por meio de profissionais do programa federal de eMulti (Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária) e do Caps (Centro de Atendimento Psicossocial).
O serviço é oferecido a todos, em abordagens individuais ou grupais, e pode ser acessado nas Unidades Básicas de Saúde.
Franco da Rocha conta com apenas uma equipe eMulti, implementada em junho de 2024, conforme dados do governo federal. Ainda segundo a gestão, os profissionais são os responsáveis por atender tanto às demandas gerais quanto às ações estratégicas, como grupos de gestantes e planejamento familiar.
Em resposta à intensificação dos eventos extremos, Franco da Rocha diz que adotou estratégias para mitigar e prevenir os possíveis impactos.
Parte dessas ações está embasada no Plano Diretor Municipal, criado em 2007 e revisado em 2015, que prevê diretrizes para o manejo de águas pluviais, controle de uso do solo e preservação de áreas permeáveis.
A legislação local também estipula a elaboração de um plano municipal de prevenção e combate a inundações — iniciativa que, embora prevista, ainda não foi implementada de forma plena e efetiva, como apontado pelo relatório FGVces (2024).
Em 2021, o município concluiu o PMRR (Plano Municipal de Redução de Riscos), em parceria com a Universidade Federal do ABC e apoio do Ministério das Cidades. O plano mapeou cerca de 230 áreas críticas e identificou 1.177 moradias em setores de risco, com propostas de intervenção a custos acessíveis.
Piscinão EU-09, inaugurado em Franco da Rocha no começo do ano com o objetivo de auxiliar no combate a enchentes @Orlando Junior/ PMFR
Eventos críticos continuam a ocorrer, e as medidas adotadas pela prefeitura permanecem majoritariamente paliativas, como os programas de abrigo temporário e auxílio-aluguel — popularmente conhecidos como Casa de Passagem e Aluguel Social. Segundo Elaine Kipp, secretária de Assistência Social, o acolhimento é voluntário, e mesmo aqueles que optam por não aceitar os auxílios ainda recebem cobertores e colchonetes.
Entre as estratégias de mitigação adotadas nos últimos anos, há ainda a construção de piscinões — reservatórios projetados para conter o excesso de água das chuvas. Embora apontados como solução estrutural para o controle de enchentes pelas autoridades, moradores têm questionado sua eficácia.
Um fator de questionamento é a localização dessas represas, em áreas de confluência dos rios Ribeirão Euzébio e Juqueri, uma posição que pode resultar em efeitos colaterais.
*Reportagem publicada em parceria com a disciplina Legislação em Jornalismo da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP (Universidade de São Paulo), por meio do professor Vitor Blotta.

