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Entre o apagamento e a memória: onde estão os meus heróis?

Por: Daniel Santana

Mais um 20 de novembro está aí. Dia em que muitos, supostamente, se conscientizam sobre aqueles que lutaram e continuam lutando por respeito, igualdade e identidade. Mas aí? Você que está lendo esse texto enxerga o reconhecimento do povo preto pela cidade?

A cinzenta São Paulo fala por meio de suas pedras, monumentos e placas. Mas, quando olho com atenção, quase não encontro meu reflexo. Onde estão as marcas da nossa história negra nesse chão?

Num desses trajetos pela cidade, deixei o olhar repousar sobre esculturas, ruas e avenidas. Vi estátuas erguidas com imponência, que fazem brilhar “heróis” que, ao folhearmos as páginas “brancas” da história, se desfazem já nos parágrafos seguintes.

Magno Borges/Agência Mural

Mas onde encontrar os verdadeiros? O povo que lutou, resistiu e representa não só na cor, mas também nos ideais?

Afinal, seja na história, seja no dia a dia, a carne mais barata do mercado segue sendo a carne negra…

Um estudo do Instituto Polis, em 2020, mostrou que, dos 367 monumentos da cidade, apenas cinco eram de figuras negras, menos de 1%: Luís Gama (1931), O Engraxate e o Jornaleiro (1950), Marighella (2004), Zumbi dos Palmares (2016) e Mãe Preta (1955). Todas as esculturas na região central.

O dado não surpreende diante do apagamento constante da memória negra em São Paulo. Basta lembrar da Estação 14-Bis, que vem sendo construída sobre sítios arqueológicos do Quilombo Saracura no Bixiga. Ou do bairro da Liberdade, historicamente um reduto preto, depois ocultado pelo tempo.

Estátua de Deolinda Madre, conhecida como a Madrinha Eunice. Ela foi fundadora da Escola de Samba Lavapés e está instalada no bairro da Liberdade @Daniel Santana/Agência Mural

Ali está a memória de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, cuja lembrança resiste em uma pequena igreja praticamente escondida. Por perto, Madrinha Eunice, matriarca do carnaval paulistano e fundadora da Escola de Samba Lavapés, ganhou uma estátua colocada de qualquer jeito, despercebida por muitos que passam.

E Luís Gama, abolicionista e jornalista (que me inspira na profissão), conta uma homenagem discreta pelos lados do Arouche.

O mesmo vale para esculturas recentes, de 2022, que homenageiam Geraldo Filme (sambista e militante na Barra Funda) e Adhemar Ferreira da Silva (recordista mundial de salto triplo, em Santana): grandes nomes, de forte ligação nas regiões, mas com representações pequenas e em locais de pouco destaque. Muito longe da importância que ambos possuem na memória cultural e esportiva do país.

Outros sequer são lembrados: Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Mãe Sylvia de Oxalá. Quantos mais seguirão esquecidos? A prefeitura fala em revitalizar e mudar esse cenário. Mas, por enquanto, a promessa parece caminhar a passos lentos.

Magno Borges/Agência Mural

Outro ponto: como educar racialmente uma cidade em que os jovens negros não são reconhecidos na paisagem urbana, apesar de serem 48,9% dos habitantes, de acordo com o último Censo.

Como incentivar sonhos se eles não encontram, nas ruas, exemplos da mesma cor que trilharam caminhos de valor e resistência?

Enquanto isso, as figuras de bandeirantes permanecem imponentes. Com 13 metros, a estátua de Borba Gato é três vezes maior do que o maior monumento negro da cidade: a mãe preta, com 3,64 metros. Outros casos são ainda mais gritantes. Se compararmos com a estátua do Engraxate e do Jornaleiro, com 1,5m, a diferença salta para oito vezes. Os dados são do Instituto Polis.

Borba Gato foi um escravocrata e tem um grande monumento em Santo Amaro @Daniel Santana/Agência Mural

Por que se exalta tanto personagens controversos ao mesmo tempo que ignoram aqueles que carregaram no corpo, na voz e na alma a luta do nosso povo?

Eu, que venho da periferia e nela vivo, sinto a ausência de referências por aqui também. Poucas estátuas, quase nenhuma homenagem.

Lembro de Carolina Maria de Jesus, que, em 2022, ganhou uma escultura em Parelheiros após pressão de diversos movimentos afro. Mas, quantas figuras que merecem uma reverência continuam sem essa honraria?

Esculturas e nomes de ruas em memória de figuras duvidosas não faltam. Mas, onde enxergo os meus?

Talvez esse apagamento exista por aqui desde o quase nulo reconhecimento dos feitos de Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas (1721-1811). Escravo alforriado e artesão de apelido que significa “aquele que tem grande habilidade”, teve suas obras renegadas pelo tempo por conta de sua retinta cor.

O mestre de cantaria foi fundamental na então modernização da cidade, traçando obras como o Chafariz da Misericórdia (já demolido) e uma das restaurações no Mosteiro de São Bento e na Catedral da Sé.

Infelizmente, conseguiram com sucesso, anular por décadas e décadas a história deste homem fundamental para a arquitetura de São Paulo.

Diante dessa negação da nossa história, busco os heróis em livros, registros e memórias, por meio das escolas de samba do nosso carnaval, que são algumas das instituições que fazem esse resgate de forma constante por meio de seus enredos. Mas, só esse importante movimento não basta.

Sigo acreditando que um dia nossa história será mais reconhecida. Lembrar de quem lutou por educação, saúde, cultura e liberdade é vital para o crescimento de uma sociedade diversa, consciente do passado, orgulhosa do presente e comprometida com um futuro justo.

Se a cidade oculta nossos heróis, em monumentos ou salas de aula, e nos faz sangrar diariamente, como esperar que a próxima geração possa acreditar em algo melhor?

Como diz a letra de Negro Drama, dos Racionais MC’s: “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”. Infelizmente, os versos refletem apenas o olhar enviesado de uma parte da população que insiste em não enxergar e reconhecer nossa grandeza.

O 20 de novembro não pode acabar reduzido a um símbolo, enquanto um povo inteiro, dia após dia, luta pelo direito básico de existir e de ser reconhecido em uma cidade que insiste em nos apagar.

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