Léu Britto/Agência Mural
Por: Thauane Blanche
Notícia
Publicado em 30.09.2023 | 12:21 | Alterado em 09.10.2023 | 10:25
Cris ‘Tubarão’, 40, gosta de motos desde cedo. Moradora de Guarulhos, na Grande São Paulo, ela aprendeu aos 13 anos a conduzir motos e se inspirava no irmão que trabalha como motoboy. Há 15 anos, porém, Cris teve a trajetória interrompida.
Ela bateu atrás de uma carreta na avenida Monteiro Lobato. Sofreu uma fratura da tíbia e fíbula (batata da perna), e ficou seis meses em processo de recuperação. Hoje tem uma platina na perna com quatro pinos e uma cicatriz no rosto. Recuperada, manteve o amor pelas motos que ganharia ainda mais peso na vida dela.
Nos últimos anos, quando a pandemia de Covid-19 chegou, ela não viu outra saída a não ser usar essa paixão como “ganha pão” e passou a ser entregadora. Apesar da renda, ela vê riscos na atividade por conta do trânsito violento.
“Não temos uma garantia financeira, então é bom sempre ter um dinheiro guardado para nos manter em casos de acidente”, afirma. Hoje, ela procura estar sempre atenta entre dois a três carros à sua frente e nos retrovisores. Porém, vê o serviço de entregas com perigos por conta da necessidade de entregar o mais rápido possível.
Os riscos em vias de trânsito para quem trabalha com entrega é uma questão que segue preocupante na capital paulista. Segundo o Relatório Anual de Acidentes de Trânsito de 2021 feito pela CET, os motociclistas são a maior parte das vítimas do trânsito da capital.
Além disso, na região metropolitana de São Paulo, as mortes por condutores de motos representam quase 6 mil das 15 mil mortes dos últimos anos, segundo o Infosiga. Metade das vítimas são pessoas com menos de 30 anos.
A Agência Mural entrevistou 12 entregadores de comida por aplicativo sobre os desafios da profissão nas periferias e os riscos do trânsito.
Em geral, os profissionais se queixam da necessidade de atenção redobrada a todo momento, seja por conta dos outros carros, dos buracos nas vias e possíveis assaltos. Também citam o desafio de correr para garantir mais entregas, pois o valor recebido dependerá de quantas vezes conseguir levar produtos.
“Por mais que a gente tome as devidas precauções, às vezes as pessoas esquecem que em cima da moto também existe uma vida”, diz Marcelo Reis, 47, entregador do Itaim Paulista.
Com a necessidade de suprir as contas de casa, a maioria das pessoas recorre à profissão como uma segunda opção, pelo retorno financeiro imediato. É comum que se dividam em dois turnos trabalhando até 12 horas por dia – a jornada de trabalho pode ultrapassar 60 horas semanais.
Em dias de chuva, quando as pistas estão mais escorregadias, são os que compensam mais, porque os aplicativos acionam incentivos financeiros. A Agência Mural contatou empresas de entregas como iFood, Lalamove e Loggi para um posicionamento.
Em nota, o iFood respondeu que está avaliando as possibilidades de aprimorar as dinâmicas de incentivos “dentre elas, criando uma trava para garantir que elas não aconteçam em períodos de condições climáticas que possam colocar em risco a vida do entregador”.
“Nós saímos de casa pensando em buscar nosso dinheiro e muitas vezes não conseguimos voltar, ou pior, às vezes nem chegamos no destino de trabalho”, diz o entregador Wagner Carvalho, 38, que é morador do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.
‘Em dia de chuva é muito pior, isso nos atrapalha de forma direta, muitas vezes corremos pra compensar o tempo perdido e acontecem os acidentes’
Wagner Carvalho, entregador da zona leste de SP
Outra queixa feita pelos entregadores, foi a de clientes que reclamam de descer até a portaria do condomínio para retirar o pedido, alegando que o prestador de serviço deveria ir até a porta. As próprias plataformas de aplicativo e empregadores já reforçaram que não é função do entregador ir até o apartamento do cliente.
“Recebemos apenas por entrega realizada, então o ‘corre’ é fazer o máximo de entregas possíveis sem se colocar em risco, mas aí o cara que vai receber demora 8 minutos para encontrar o entregador”, ressalta Wagner.
Art. 27 – “Antes de colocar o veículo em circulação nas vias públicas, o condutor deverá verificar a existência e as boas condições de funcionamento dos equipamentos de uso obrigatório, bem como assegurar-se da existência de combustível suficiente para chegar ao local de destino.”
Art. 28 – “O condutor deverá, a todo momento, ter domínio de seu veículo, dirigindo-o com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito.”
Art. 54– “Os passageiros de motocicletas, motonetas e ciclomotores só poderão ser transportados utilizando capacete de segurança; em carro lateral acoplado aos veículos ou em assento suplementar atrás do condutor; usando vestuário de proteção, de acordo com as especificações do CONTRAN.”
Art. 57 – “Os ciclomotores devem ser conduzidos pela direita da pista de rolamento, preferencialmente no centro da faixa mais à direita ou no bordo direito da pista sempre que não houver acostamento ou faixa própria a eles destinada, proibida a sua circulação nas vias de trânsito rápido e sobre as calçadas das vias urbanas.”
Gerente de uma hamburgueria no Itaim Paulista, Matheus dos Santos Rodrigues conta que um dos funcionários já foi hostilizado por não subir até o apartamento do cliente. “É por uma segurança de todos, não posso falar para o motoboy subir. E se de repente acontece algo dentro do condomínio ou até com a pessoa que fez o pedido?”.
“Os contratantes precisam reconhecer os entregadores como peças chaves para as vendas funcionarem, tendo em vista que eles movimentam boa parte dos e-commerces. Sem o entregador não se chega ao cliente”, diz Matheus dos Santos.
Um dos apontamentos feito pelos motoboys é a falta de recursos, desde os trajes de equipamento como bag, capa de chuva, capacete até o respaldo financeiro, que segundo eles, tem diminuído drasticamente.
No dia 12 de setembro, motoboys se reuniram em frente ao MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), em Brasília, enquanto representantes de aplicativos discutiam o acordo de regulamentação dos prestadores de serviços.
Os motoentregadores exigem uma remuneração justa, suporte e condições dignas de trabalho, saúde e segurança. As decisões do acordo ainda não foram divulgadas.
A Agência Mural questionou as empresas sobre ações para dar melhores condições de trabalho aos profissionais. Apenas o iFood deu retorno. Em comunicado, a empresa afirmou que faz ações como Seguro Pessoal, com cobertura para despesas médicas e hospitalares em rede credenciada, e o Anjos de Capacete, que fornece treinamento de primeiros socorros.
Para iniciar na profissão é necessário investir em uma moto tendo a opção de financiar ou alugar semanalmente, esse segundo tem um custo médio de R$ 170 por semana com aluguel. É indicado que a manutenção do veículo seja feita entre 3 mil a 5 mil km rodados, com a média de R$ 100 cada.
Equipamentos básicos como capacete, capa de chuva, botas, pescoceira e afins são investimentos essenciais para manter a segurança, ao todo o valor mínimo para adquirir todos esses itens são R$ 570.
Uma pesquisa de 2022 realizada pela Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) junto ao Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), mostra que quase 400 mil pessoas trabalham como entregadores de aplicativos no Brasil.
Segundo os dados, uma jornada de trabalho com 40 horas semanais leva a uma renda média líquida mensal que pode variar entre R$ 1.980 e R$ 3.039. A quantia varia conforme a ociosidade do entregador, ou seja, período em que estão online no aplicativo, mas sem um pedido para atender.
O maior incentivo dos entregadores é a flexibilidade de horários e a autonomia de se organizar à sua maneira. “Você é livre para trabalhar como quiser e ainda tem o contato direto com o público, o que te gera conhecimento sobre muitas coisas, isso é incrível”, diz Isaac Moreira Carvalho, entregador do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.
De volta a Cris, ela aponta outro desafio. O fato de ser quase uma exceção nesse trabalho majoritariamente masculino. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas 5,9% dos entregadores são motogirls.
Cris cita que muitas sofrem preconceito no trânsito por conta do gênero, sendo hostilizadas pelos demais motoristas. Para ela ainda existe um preconceito masculino com as mulheres que trabalham com entrega, e que esse cenário só deve mudar com mais companheiras na profissão.
“É necessário ser resiliente para enfrentar o dia a dia. Mas estou aqui para quebrar esse tabu e mostrar que as coisas podem ser diferentes.”
Jornalista em formação, fascinada por arte de rua que me inspira diariamente no quesito adaptação e coletividade. Correspondente do Itaim Paulista desde 2023.
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