São 2h30 da manhã. Entre motos que sobem e descem, um grupo de aproximadamente 20 pessoas caminha em direção aos mais de 10 paredões que se estendem por cerca de 1km entre ruas, travessas e vielas, no famoso ‘Baile do Helipa’, localizado na maior favela da cidade de São Paulo, Heliópolis.
Descentralizado e sem uma organização fixa, os fluxos são realizados de sexta-feira à domingo, em diversas ruas da favela ao mesmo tempo. Hoje não existe um ‘Baile do Helipa’, mas vários, que tocam com caixas de som potentes, de mais de dois metros de altura.
Porém, nem sempre existiu essa estrutura. Nesta reportagem especial, a Agência Mural mostra como o movimento nasceu, cresceu e se tornou uma das marcas do bairro, aborda como o baile é visto pela comunidade dividida entre o aquecimento da economia e as reclamações sobre o barulho.
Também sinaliza quais são as soluções dos dilemas e o papel do baile para toda uma geração de jovens periféricos.
Do black ao paredão
Uma das pessoas que acompanhou o Baile do Helipa desde o princípio é Reginaldo Gonçalves, 48, morador de Heliópolis há mais de 30 anos e coordenador do Observatório de Pesquisa de Heliópolis – De Olho na Quebrada.
Ele relembra que antes das ruas, becos e vielas serem tomadas pelo público, as primeiras manifestações de festa pública em Heliópolis aconteciam na quadra da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), na rua da Mina.
“[Na quadra da Unas] tocava black music. Acontecia uma vez por mês, mas era muito pouco, né? E os jovens precisavam de um espaço de lazer e diversão dentro da comunidade”, relata.
O registro dessa história não está só na memória dele, como também na pesquisa O Baile Funk em Heliópolis, realizada pelo observatório. O levantamento contou com o depoimento de 471 jovens e serviu também para mapear a trajetória do movimento.
Depois desse período da black music, entre 2000 e 2010, os bailes em Heliópolis passaram a contar com uma organização centralizada formada por equipes de DJ’s e MC’s da favela e de outras periferias de São Paulo, que se dividiam entre divulgação e estrutura para a festa.
Entre essas equipes estão: Máquina, Família Ninguém Dorme, Bonde da 3 e Bonde do Pinhal, responsáveis por fazer os bailes acontecerem em Heliópolis. Assim como a época da black music, as apresentações dos DJ’s e MC’s também rolavam uma vez por mês. “Tinha todo um processo de conversar com os moradores, uma organização de dias e horários das apresentações.”, afirma Reginaldo.
Contudo, com o passar dos anos, os bailes passaram a ser realizados de forma espontânea. Jovens começaram a usar carros com paredões de sons para fazer as apresentações.
Com a chegada dos carros com som, DJ’s e MC’s perderam a motivação nesses eventos, por conta do custo e da dificuldade em competir com o som dos paredões. “Depois disso perdeu o controle, qualquer pessoa podia fazer, não tinha mais um responsável.”
A era do funk
A partir de 2010, com o crescimento da cultura funk, ascensão dos MC’s e produtoras como Kondzilla e GR6, a atração tomou outras proporções e passou a ser frequentada por milhares de pessoas de fora de Heliópolis.
Nesse período, alguns MC’s como João, Bin Laden e 2K, faziam referência ao ‘Baile do Helipa’ em suas letras. Na música Baile de Favela do MC João, que se popularizou no país, um dos primeiros bailes citados na letra é o de Heliópolis.
Para Renata Prado, 33, diretora da FNMF (Frente Nacional de Mulheres no Funk) foi nesse período que a cultura funk de fato se consolidou em São Paulo.
“Antes disso, já tinha um movimento na cidade, com muitos funkeiros, mas não tinha MC’s”, comenta a moradora do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. “Na época se consumia muito funk da Baixada Santista e do Rio de Janeiro, mas não era rotulado e categorizado como nada.”
O crescimento desse movimento na região impulsionou a fama do bairro e tem atraído muitos jovens de outras quebradas.
Turistas em Heliópolis
Para chegar até o fluxo, como são conhecidas as ruas em que concentram o baile, “tem que ter disposição”, já que cerca de 2,5 km separam o terminal de ônibus e metrô mais próximo.
Mas a distância não é um impeditivo. Pelo menos 40% do público do baile são de outros bairros da cidade ou de municípios próximos como: São Caetano do Sul, Diadema e Santo André.
É o caso do micropintor de automóveis, Rogério Dias, 23, que mora no Brasil há cerca de dois anos e visitou o ‘Baile do Helipa’ pela primeira vez. Residindo no município vizinho à favela, São Caetano do Sul, Dias conta que sempre quis vir ao baile no Brasil, conhecer a cultura e saber como era o movimento funk de perto.
“Eu já ouvia funk [na Venezuela], mas aqui é outra cultura, é diferente, então decidi vir para ver como era. Acho o baile muito legal […] Assim, lá na Venezuela também tem bailes nesse estilo, só as músicas e cultura que são diferentes”, comenta o jovem.
A cabeleireira e empreendedora Kelly Barbosa, 30, também conta que a distância ou mudança de bairro não a impediram de curtir os bailes. Antes moradora do Jaraguá, na zona norte de São Paulo, desde 2019, ela vive no Ipiranga e ao menos uma vez por mês frequenta o Baile do Helipa.
“Vivo isso [os bailes funk] desde muito cedo. Antes eu ia na minha quebrada, agora que não moro por lá, venho aqui”, relata a empreendedora.
‘Mesmo hoje eu tendo condições para frequentar outros lugares, eu prefiro vir aqui, porque é parte do que eu sou, enquanto uma mulher preta periférica’
Kelly, cabeleireira e moradora do Ipiranga
Além de ser um espaço de lazer noturno para muitos jovens das periferias, Renata Prado, da FMNF, aponta que o deslocamento desse grupo de pessoas vindos de diversas regiões da cidade é um “movimento de aquilombamento”.
“É uma juventude que sai de vários lugares, para ocupar vários espaços para cultuar uma música, um corpo que é a dança, a arte. E isso também faz parte dos quilombos”, comenta Prado. Apesar disso, essa ocupação é polêmica para muitos moradores do Helipa.
Amor e ódio
Para Aline Cristina, 22, moradora de Heliópolis há 21 anos, o Baile do Helipa traz algumas desvantagens para quem mora próximo às grandes caixas de som e das ruas tomadas pela movimentação dos frequentadores madrugada adentro.
“Não é daora nenhum pouco o baile, ainda mais porque a gente quer descansar”, conta a jovem que tem os pais idosos. “Faz muito barulho, as janelas daqui de casa ficam tremendo.”
Segundo a pesquisa O Baile Funk em Heliópolis, – 41% dos entrevistados afirmaram que o fluxo na comunidade incomoda a vizinhança, em decorrência do barulho alto gerado pelos paredões de som. Outro ponto destacado é o lixo quando o baile termina, lá pelas 6h da manhã, citado por 74% dos moradores ouvidos.
“De manhãzinha, são os donos das casas que limpam as ruas do baile, não é quem faz a sujeira. Vem muita gente de fora [para o fluxo do Helipa]. Aqui você vai ver muita gente da ZL e ABC Paulista.”, afirma.
A pesquisa “O Baile Funk em Heliópolis” propõe soluções aos pontos negativos que parte da comunidade apresenta. Dentre as propostas estão a garantia de infraestrutura adequada para a realização (banheiros químicos, ambulâncias e lixeiras), isolamento acústico das moradias, ações de redução de danos e outros.
No entanto, ainda há distanciamento do poder público com relação ao fluxo, e há ainda muito preconceito.
‘Tem gente que tem muito preconceito em relação à música funk. Mas aqui toca de tudo e mais um pouco. Quem vem pra cá, pro baile, vai curtir o funk, o forró, rap e até sertanejo. Tudo isso rola numa noitada no Heliópolis‘
Reginaldo, pesquisador do Observatório de Olho na Quebrada
Para ele, é necessário buscar uma solução que permita que a juventude periférica se divirta, mas que promova o espaço coletivo e não prejudique nem jovens nem os moradores.
“É um baita potencial ver o jovem de periferia criar, no seu próprio território, um espaço de divertimento. Isso é valorizar a comunidade que ele está inserido. Mas também tem o lado negativo da história que a gente não pode esconder e jogar para debaixo do tapete”, finaliza.
Mesmo contra os bailes, Aline observa um ponto positivo. A oportunidade para vendedores de bebidas e alimentos da região lucrarem com a movimentação dos frequentadores. “A parte boa é que os comerciantes locais vendem muito.”, disse.
Comerciantes locais
Situado bem na esquina de uma das principais ruas do fluxo da maior favela de São Paulo, encontra-se o Lanches da Bay, uma pequena lanchonete administrada pela proprietária Liberalina da Conceição, 46, moradora de Heliópolis há mais de 30 anos.
Para além de gerir um comércio dentro do baile, Liberalina também trabalha como ajudante de cozinha em uma cafeteria na Vila Mariana, na zona sul da capital paulista.
No contraturno, sobretudo nas madrugadas de sexta-feira e sábado, a Bay – como é popularmente conhecida – abre a lanchonete para recepcionar o público que vem curtir o Baile do Helipa. No entanto, a empreendedora relata que o comércio não tem recebido tantos lucros assim.
“Só abro aqui, no Heliópolis, aos fins de semana, porque é mais uma ajuda de custo para que eu possa complementar a minha renda mensal. O faturamento da lanchonete não é lá essas coisas”, diz.
Mãe de Victor e Michelly, Liberalina também recebe a ajuda dos filhos para gerir o salão e atender os clientes da lanchonete, principalmente nos horários de grande movimentação do fluxo.
“O meu filho, o Victor, me ajuda bastante aqui, mas como ele estuda jornalismo e está em semana de provas, acabou indo embora para descansar. Já a minha filha, a Michelly, trabalha em uma firma de costura, mas ela também fica aqui comigo.”, relata.
A jornada de Liberalina acaba entre 6h e 6h30 da manhã, quando a música é interrompida e o baile se esvazia, pouco a pouco. Para a dona do Lanches da Bay, o fluxo tem partes positivas e negativas. Cita a questão do volume alto dos paredões de som e a dificuldade para sair da região, em caso de emergência, por causa do grande fluxo de pessoas.
Porém, vê a festa como um espaço para o divertimento da juventude da comunidade. Além de ser um local favorável aos comerciantes da região.
“É um baile saudável, não troco aqui por lugar nenhum. Apesar do barulho, eu amo o Heliópolis, aqui eu me sinto respeitada.”, afirma.
Em uma tenda branca localizada próxima à entrada de uma das vielas do baile, Marlene Pereira, 54, moradora de Heliópolis há 21 anos, vende bebidas aos frequentadores e visitantes do fluxo. Em especial, Gin com Frutas, o drink mais pedido pela galera.
Comerciante do Baile do Helipa desde que começou na comunidade, Marlene presenciou muitas mudanças ao longo dos últimos anos dentro do fluxo. Sobretudo, o declínio financeiro que alguns pequenos comércios locais sofreram, por conta da expansão e verticalização de empreendimentos de pequeno e médio porte.
“Vi muitas pessoas derrubando casas para fazer comércio […] Antes de abrir tantos comércio [nas ruas do Baile do Heliópolis] a venda de bebidas rendia muito mais. Mas hoje [o movimento das vendas] está muito fraco.”, conta.
Cultura negra
Segundo ranking divulgado pelo Spotify Brasil, o funk é o quarto gênero musical mais ouvido no país e também figura o terceiro lugar com o artista MC Ryan SP, em 2023.
Para Renata Prado, diretora da FNMF (Frente Nacional de Mulheres no Funk) o movimento funk corresponde a um fenômeno da cultura negra brasileira eletrônica, que assim como outros gêneros como samba e a cultura hip hop possuem características muito similares.
“Se formos ouvir maculelê, a gente percebe que tem o toque do funk, se ouvirmos congada de ouro, também. Qualquer semelhança não é mera coincidência. [O funk] é parte da cultura afro-brasileira”, comenta.
Por ser parte fundamental da cultura afro-brasileira, Prado defende um espaço de diálogo participativo entre governo do estado e prefeitura, para construir políticas que não sejam “de cima para baixo, dizendo o que o funk tem que fazer”, mas considerem o movimento funk em outros espaços de decisão como: na cultura e na educação.
“Os funkeiros, estão em todos os lugares da cidade, não somente no baile. Precisamos discutir uma política que possa dialogar com eles, entender da melhor forma como esses bailes podem ser mantidos nas ruas e ter um acordo saudável entre a juventude e os munícipes”, aponta.
Na esfera da educação, Renata aponta a importância de incluir o ensino do movimento funk nas escolas, a partir da aplicação da lei 10.639/03, que garante o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no calendário escolar.
‘Se entendemos que o funk é cultura negra podemos falar sobre o funk nas escolas. Mas precisamos de um projeto de formação pedagógica para os professores, que hoje não existe e é importante’
Renata Prado, diretora da Frente Nacional de Mulheres no Funk
Reginaldo enfatiza o potencial dessa ação, tendo em vista que essa manifestação artística continua alcançando, sobretudo, o jovem das periferias com poucas opções de lazer. “É um evento cultural de valorização da cultura periférica, da riqueza que existe nas periferias e nos espaços da juventude”, afirma.