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Ferréz celebra 25 anos de Capão Pecado, planeja novos livros e promete “continuar tumultuando”

Por: Cleberson Santos e Suzana Leite

O ano era 2000 quando Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, lançou o primeiro livro de ficção: “Capão Pecado”, ambientado no distrito do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. Vinte e cinco anos depois, o escritor segue carregando o inconformismo. “Enquanto não tiver bom para todo mundo, não está bom para mim. Por isso que tenho sede e tenho fome, é pelos outros também”.

O livro, que é um dos marcos da Literatura Marginal, completou 25 anos em outubro. Para o autor, a região mudou desde o lançamento, apesar de ainda viver alguns dos mesmos problemas dos anos 1990.

“Na coisa da escassez, da pouca estrutura, está igual. A parte da saúde evoluiu pouco. Sempre tem poucos médicos, os postos de saúde não evoluíram”, avalia Ferréz, em entrevista à Agência Mural.

Parede do escritório de Ferréz em Itapecerica da Serra exibe relíquias como diplomas, flyers e entrevistas antigas em jornais @Suzana Leite/Agência Mural

“Agora tem um pouco mais de acessibilidade, alguns comércios grandes que chegaram. A parte da violência mudou. Ela não evoluiu nem “desevoluiu”, mudou a forma de violência”, ressalta o escritor.

A obra conta a história de Rael, garoto que se apaixona por Paula, namorada do seu melhor amigo Matcherros. Além do entrave amoroso, o texto traz histórias que retratam a realidade violenta do Capão Redondo na década de 1990.

À Mural, Ferréz fala sobre a relação dele com o livro famoso e com o próprio Capão Redondo, como é revisitar o universo retratado em Capão Pecado, conciliar a literatura com tantas outras atividades, além de conselhos para quem deseja escrever.

Literatura marginal

O movimento da Literatura Marginal, de acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, “se caracteriza principalmente pela condição social do escritor, que, historicamente excluído, aspira ao reconhecimento literário por meio de uma produção que ao mesmo tempo retrata e procura enfrentar a situação de marginalidade”.

Capão Pecado se tornou uma marca desse estilo. A partir de textos publicados na revista “Caros Amigos”, em 2001, outros autores periféricos tornaram-se conhecidos também. Nomes como Alessandro Buzo, Allan da Rosa, Sacolinha e Sérgio Vaz.

Capa de “Capão Pecado”, na versão publicada pela editora Companhia das Letras em 2020, duas décadas após lançamento do livro @Cleberson Santos/Agência Mural

Raízes na zona sul

Ferréz nunca deixou o Capão Redondo. Ele viveu no Jardim Comercial, bairro do distrito. Atualmente, mora em Itapecerica da Serra, cidade vizinha ao bairro, mas a loja, a ONG e as histórias dele seguem na região.

Antes de Capão Pecado, Ferréz lançou, de forma independente, o livro de poesias “Fortaleza da Desilusão”, em 1997. A divulgação era no boca a boca e as poesias foram impressas em xerox, na própria empresa em que ele trabalhava na época.

No caso de Capão Pecado, foi diferente. Havia uma participação da comunidade na construção da obra. “Conforme fui fazendo, fui contando para os moradores, comecei a fazer a população participar disso. E ficou uma brincadeira legal, porque onde ia, as pessoas participavam”.

Estante no escritório do escritor conta com títulos publicados pela Comix Zone, editora de quadrinhos da qual o autor é sócio @Suzana Leite/Agência Mural

O Capão Pecado é um livro de ficção, porém muitos personagens e histórias relatadas são inspiradas na realidade. Enquanto uns participavam com relatos, teve até quem não entendesse bem a proposta da obra, chamando o autor de mentiroso.

Porém, o mais importante para o escritor é que as pessoas conseguissem identificar lugares, a si mesmos e a própria realidade naquelas páginas.

“Era o que eu queria sentir ao ler uma obra. Estava lendo autores como Dostoievski [escritor russo autor de Crime e Castigo] e Jorge Amado [um dos principais escritores brasileiros], mas nada falava da minha quebrada, do meu bairro, nada próximo de mim”.

Foi assim até ter contato com outro precursor da Literatura Marginal, o livro “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, lançado três anos antes, em 1997: “Eu falei: ‘Pô, esse livro tem mais a ver comigo’. E aí me deu vontade de fazer uma coisa sobre o meu bairro, sobre aquelas pessoas”.

‘Teve amigo meu que faleceu, que só ficou vivo no livro, sabe? A vida dele está ali, as pessoas falam: ‘Meu, quando eu estou com saudade, eu vou lá ler no livro’. Então, deixar isso é importante’

Ferréz, autor do livro Capão Pecado

Sobre o Ferréz de 25 anos depois

Ferréz possui ao todo 12 livros publicados, entre romances, poesias, literatura infantil, contos e até quadrinhos. Além disso, é fundador da marca de roupas 1 da Sul e de bonecos Porcovelha Toys, sócio das editoras Selo Povo e Comix Zone, responsável pela ONG Interferência e produtor de conteúdo para a internet.

Mesmo com tantas atividades paralelas, organizadas por ele em um quadro de acrílico sob a mesa na sede da editora em Itapecerica da Serra, Ferréz nunca abandonou a escrita.

Durante a entrevista, ele exibiu o caderno de anotação que carrega em qualquer lugar e onde rascunha os próximos textos e livros: “Ando com meu lado de escritor o tempo todo”.

Bonecos do autor Ferréz produzido pela Porcovelha Toys, empresa que tem o próprio autor como sócio @Suzana Leite/Agência Mural

Atualmente, ele trabalha em dois novos livros. O primeiro, com previsão de lançamento para até o começo de 2026, será o primeiro de não-ficção dele, sobre empreendedorismo.

“Não vai ser aquela coisa de o cara estar no escritório e contar que você vai faturar R$ 1 milhão se pensar positivo. Vou explicar na prática, e o que a literatura me ensinou para montar minhas empresas”, detalha o autor.

Já o segundo livro, que ainda está em desenvolvimento, será um novo romance. Pela primeira vez, Ferréz vai contar uma história que se passa numa realidade de classe média alta, mais especificamente em um condomínio fechado.

“É uma espécie de vingança para essa classe”, avalia. “E tem muito a visão da periferia. Não consigo escrever como classe média, nem como classe alta, porque não pertenço a esse grupo, nem quero pertencer e não tenho tesão por esse grupo”.

Ferréz possui 12 obras publicados, entre romances, contos, poesias, literatura infantil e, mais recentemente, quadrinhos @Suzana Leite/Agência Mural

O lançamento mais recente do escritor foi a graphic novel Carimbê (2024). O roteiro é dele e o desenho é do artista brasiliense Doug Firmino.

Carimbê é um pedreiro que após se envolver em uma briga no Rio de Janeiro, precisa morar de favor na casa da irmã no Capão Redondo. Na vida real, o personagem é inspirado em um amigo de Ferréz, o Celso.

“E eu tinha uma amizade com ele, parava para ouvir. Atendia ele no bar também, quando eu trabalhava. Ele é a personificação do ‘cabra’. Vai arrumar a pia? Chama o cabra. Isso é uma pessoa invisível na comunidade, até para nós. E o Celso era isso”, comenta Ferréz, sobre a obra que é uma espécie de continuidade de “Capão Pecado”.

“Foi um processo bonito revisitar tudo isso, fiquei com saudade do Celso. Eu gostava muito dele”.

Essa não foi a primeira vez que Ferréz precisou revisitar as histórias de Capão Pecado. A edição mais recente, lançada em 2020 pela editora Companhia das Letras, foi a sexta edição revisada do romance. E o autor não vê problema em corrigir e fazer alterações no texto quando sentir que é necessário.

Carimbé foi a primeira publicação de Ferréz no universo dos quadrinhos @Suzana Leite/Agência Mural

O autor relata que sempre ouviu reclamações das ‘minas’ sobre trechos que elas consideravam machistas.“Por qualquer pessoa que reclamar, eu mudo’. Não tem orgulho nenhum”.

Ferréz recorda que tinha pouco mais de 20 anos quando escreveu a obra, o que pode ter contribuído para algumas das partes que havia no texto.

“Eu não tinha aprofundamento de conhecer a parte feminina. Depois fui vendo que era muito baseado no que a gente via na televisão, do que a gente achava que a mulher pensava”.

Ele diz que se “Capão Pecado” tivesse sido escrito hoje, talvez a realidade e o destino dos personagens seria diferente do retratado na virada do século.

‘O livro é um fruto da época. Era um cara desiludido. Também era para ter morrido ali naquela viela. Desanimado e desesperançado também. Vai chegar uma sexta-feira aí que vai ter uma chacina e vou estar no bar. Vai ser eu

Ferréz, escritor

Ainda que tenha mudado bastante como pessoa nesses 25 anos, Ferréz mantém um compromisso: o de se manter indignado. Esse compromisso, segundo o autor, é fruto de uma promessa que fez a uma senhora, que tinha em seu barraco um quadro de uma entrevista dele.

Sobre os próximos 25 anos

Para Ferréz, o plano para os próximos 25 anos é “continuar tumultuando”, seja como escritor ou como empresário:

“Tá muito suave para eles do jeito que está. A gente consumindo o que eles têm, dando todo o dinheiro do proletariado para eles e eles lá de boa. A meta é dar uma arranhadinha neles lá. Incomodar mais um pouco”, promete Ferréz.

Na 1 da Sul, marca que completou 25 anos em 2024, as peças são produzidas artesanalmente por costureiras da região. De acordo com a loja virtual da marca, os bonés, um dos produtos de maior destaque, são bordados à mão e pagos ao fornecedor com valor acima do praticado pelo mercado.

A marca de roupas 1 da Sul, que tem como carro-chefe os bonés com o logo, foi lançada por Ferréz em 1999 @Suzana Leite/Agência Mural

Ferréz busca levar essa lógica para os outros ramos que atua, principalmente na Comix Zone. “O mundo dos quadrinhos é um mundo elitizado. Tem um monte de gente privilegiada que quer trabalhar aqui. Eu recebo e-mail de gente bem de vida que fala: ‘Meu, eu trabalharia de graça’. Sempre que posso, eu ponho uma pessoa que pode estar em perigo social. Eu me vingo dessa forma”.

Para quem está começando na literatura ou na carreira artística, o conselho de Ferréz é “se empenhar, mas não se desesperar”. Na contramão de quem sugere largar tudo para iniciar um novo negócio, o autor recomenda enfrentar a dupla jornada, por mais pesado que seja.

“Essa coisa de correr muito para você ser melhor do que os outros não funciona na arte. A arte tem um tempo dela. Se você precisa sobreviver, você tem que fazer outro trabalho”, reflete.

“Sempre fiz um trabalho paralelo, mas a minha literatura eu não negocio. Eu aconselho vocês a não negociar o que vocês amam”.

‘Era muito mais difícil convencer as pessoas a lerem. Hoje em dia é fácil, você monta um sarau, vai mais gente. Você monta uma exposição de arte, as pessoas sabem o que é. Antigamente, era cavar pedra mesmo, desmatar

Reconhecimento e o retorno a Capão Pecado

Por conta do Capão Pecado, Ferréz tornou-se conhecido fora das periferias. Participou de entrevistas e assinou com grandes editoras. Mas nunca deixou de falar para os seus, principalmente nas escolas em que era convidado.

Quando o texto completou 20 anos, fez palestras em centenas de escolas nas periferias.

Ainda que acostumado às plateias, ele já teve dificuldades de falar sobre o livro, justamente por conta das feridas e das memórias que carrega. O que também é um fator que faz o livro ser tão verdadeiro.

“Eu estava dentro da favela, no auge da minha da minha má condição financeira, não tinha nada”, explica.

‘Quando o cara estava sem coberta, era eu sem coberta também. É um livro que até hoje me traz muita coisa boa e que acho que ele fica me pagando’

Ferréz, escritor

Isso muitas vezes fez com que tivesse dificuldade de tratar da obra, mas essa relação vem mudando conforme ele precisa revisitá-lo para reedições, novas produções e até para receber homenagens.

No começo de setembro, a obra foi tema de uma mesa na Feira do Livro Periférico, realizada no SESC Consolação, em São Paulo. O evento contou até com “Parabéns para Você” em celebração à efeméride.

“Estou me libertando um pouco e mais à vontade para falar do livro também, porque o livro também maturou”, avalia, lembrando que a história e a vida dele tem essa ligação. “Sou um cara de características fortes. E levantei várias guerras que foram difíceis. Tudo isso me construiu. Tudo isso fez a minha história também”.

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