Paraisópolis e Etiópia: duas realidades bem diferentes dos mundos imaginados por Bia Doria
Desde 2010, escrevo sobre o bairro onde morei desde que cheguei da Bahia a São Paulo, em 1995. Sou um dos jornalistas que produz reportagens para o blog Mural, hospedado há seis anos na Folha de S. Paulo.
Assim como outros 65 correspondentes locais, buscamos descortinar a visão estigmatizada sobre as periferias da região metropolitana. Com uma diferença crucial: nós estamos na periferia.
Há alguns anos, recebi um e-mail de um leitor curioso em saber como era ser “correspondente de Paraisópolis”. Certamente ele devia acreditar que seria um ofício com os “perigos” e “emoções” de um correspondente em áreas de conflito de guerra. Do Iraque, talvez.
No último domingo (9/out), ao ler a entrevista concedida pela futura primeira-dama da cidade de São Paulo, Bia Doria, recordei-me da mensagem.
Ambos revelaram, para mim, ignorância ampla e profunda sobre uma realidade que está a poucos quilômetros de distância de suas casas. Afinal, ambos são residentes da capital paulistana.
Mas tal desconhecimento vir da futura primeira-dama de nossa cidade, isso me assusta e me constrange.
Enquanto a futura primeira-dama considera Paraisópolis a Etiópia, para mim é a “Cidade do Paraíso”, o título do livro que escrevi há três anos sobre a vida cotidiana dos moradores da segunda maior favela de São Paulo.
Talvez a artista plástica também não saiba, mas o bairro ao lado, o Morumbi, que ela deve conhecer, tem m² de valor praticamente igual à favela vizinha. Efeito da especulação imobiliária, mas certamente também impulsionado pelo desenvolvimento da região.
Em Paraisópolis vivem hoje cerca de 100 mil pessoas, que formam em torno de 25 mil famílias, de renda média salarial de R$ 2.200 mensais.
Ali há também um comércio local que floresce nesta e desta geografia: são 8.000 mil estabelecimentos, entre agências bancárias, clínicas veterinárias, casas de show, grandes redes de produtos de consumo, e, em breve, até um shopping center.
Evidentemente a futura primeira-dama da capital paulista relaciona Paraisópolis e Etiópia pela imagem de extrema pobreza que ela, pelas manchetes de jornais ou pelas chamadas que ouve pela TV, crê serem parecidas.
Ela provavelmente avalia que em ambos os lugares só há pessoas que precisam de ‘ajuda’, desdentadas, à espera de um patrão gente-boa que possa dar-lhes, literalmente, um novo sorriso.
A futura primeira-dama paulistana poderia comparar Paraisópolis e Etiópia em uma série de outros aspectos para além do cenário de “carência”.
Afinal, cada um desses dois lugares possuem muitas histórias pra contar — suas realidades são mais ricas do que o que “falta”, como ela diz.
A capital etíope, Adis Abeba, é sede da União Africana, considerada uma cidade cosmopolita, com avenidas largas e cheias de árvores.
Talvez a futura primeira-dama saiba (ou não) que o país africano tem metade da população subnutrida, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas).
Mas que também é o berço da humanidade, onde começou a aventura do homem pelo planeta Terra. Por lá, foram encontrados os fósseis que explicam a evolução humana.
Talvez ela nunca tenha ouvido falar (ou nunca tenha escutado sua música) de Mulatu Astatke, o pai do jazz etíope. Em 2014, Astatke e Criolo fizeram, inclusive, uma sequência de shows em São Paulo.
Talvez a comparação à Etiópia, devido às alarmantes taxas de subnutrição naquele país, ainda esteja ligada a uma outra preocupação da futura primeira-dama: “Não adianta ter uma funcionária que chega no ateliê e tem problemas de nutrição (…)”. Porque a malnutrição “atrapalha” a produtividade do trabalho doméstico, não é?
Pertencente à classe alta, branca e sentada no coração do poder político e econômico do Estado mais rico do Brasil, a futura primeira-dama ainda reforça sua posição de poder em diferenciar “eles” e “nós”: “mas eles respiram o mesmo ar, sentem o mesmo frio que a gente”.
“Eu me dou muito bem com pessoas mais humildes. Às vezes é só um aperto de mão, às vezes elas querem um abraço. É tão pouco o que elas querem”.
Futura primeira-dama, não é pouco o que queremos.
Em 2015, o morador de Pinheiros viveu 25 anos a mais do que o da Cidade Tiradentes, segundo o Mapa das Desigualdades.
A periferia quer viver, mas viver não é só comer e beber, como dizem. Ela quer mais postos de saúde e hospitais (Paraisópolis suplica por um), quer salas de cinema, de teatro e espaços culturais nas suas quebradas, quer transporte público de qualidade e melhores condições de moradia.
Dispensamos os beijos e abraços caridosos, assim como as dentaduras.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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