Magno Borges/ Agência Mural
Por: Jacqueline Maria da Silva | Sarah Fernandes
Notícia
Publicado em 06.12.2023 | 20:01 | Alterado em 12.12.2023 | 15:13
Dois meses. Sessenta dias de conflito entre Israel e o Hamas, no Oriente Médio, uma pauta que segue mobilizando a comunidade internacional e os esforços diplomáticos mesmo de países com pouca relação com a região. O assunto parece restrito ao noticiário internacional, mas não é: os efeitos da guerra ultrapassam fronteiras e alcançam as periferias de São Paulo, nas comunidades judaicas e palestinas dessas localidades.
A Agência Mural buscou entender os efeitos da guerra para judeus e palestinos que vivem nas quebradas da capital paulista – uma tarefa nada fácil, diga-se. Nas periferias, essas comunidades são pequenas, não necessariamente articuladas e têm enfrentado dificuldades para lidar com o tema. Muitas relataram desconforto em falar sobre o assunto e em compartilhar o espaço de discussão com representantes de grupos historicamente rivais.
No entanto, dois dos contatados não apenas concederam entrevista, como também fizeram questão de ter suas vozes divulgadas: Ariel, judeu israelense, que nasceu em Jerusalém e mora no Brasil há 22 anos; e Fadah Ihlal Thum, 43, brasileira-palestina e filha de palestino, que viveu por 20 anos na Cisjordânia;.
Os relatos dos dois mostram o quão próxima a guerra está da realidade dos moradores das periferias. Para manter a imparcialidade, a Agência Mural optou por organizar as respostas nos mesmos espaços, em formato “ping-pong”, como é conhecido no jargão jornalístico. As respostas estão apresentadas em ordem alfabética.
As declarações não necessariamente representam a visão da Agência Mural.
O que é a Faixa de Gaza?
Trata-se de um território palestino composto por uma estreita faixa na costa do Mar Mediterrâneo, completamente cercado, com grande dificuldade de acesso pelas fronteiras com o Egito ou Israel. A Faixa possui uma área equivalente aos distritos de Grajaú, Parelheiros e Capela do Socorro, no extremo sul de São Paulo. A população no local, porém, é três vezes maior que nos bairros paulistanos.
Ariel Anteves, 48 Rabino, coordena uma comunidade judaica em Santana, na zona norte da capital paulista. Nascido em Israel, mais precisamente em Jerusalém, considerada sagrada por diversas religiões, Anteves vive no Brasil há 22 anos com a esposa brasileira e os dois filhos. Parte de sua família ainda vive em Israel. |
|
Fadah Ihlal Thum, 43 Empresária e mestranda, é filha de palestino e tem dupla nacionalidade. Morou por 20 anos na Cisjordânia e voltou para o Brasil em 2019 com seus quatro filhos. Atualmente reside no Brás, região central da capital paulista. Fadah visitou a Faixa de Gaza duas vezes por meio do escritório de representação do Brasil, onde trabalhou emitindo passaporte e documentos para cidadãos brasileiros. |
A tensão na região perdura séculos e foi intensificada a partir de 1947, com a criação do Estado de Israel pela ONU (Organização das Nações Unidas), que dividiu território palestino entre os dois povos. A cidade de Jerusalém ficou sob controle internacional.
Diversos conflitos eclodiram a partir daí, com apoio de potências estrangeiras, resultando na ocupação de territórios palestinos por Israel.
Israel é hoje uma nação consolidada, com um dos melhores índices de qualidade de vida do Oriente Médio. A Palestina, tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, tem baixíssimos índices de desenvolvimento humano
Palestinos criaram, em 1987, o Hamas, ou “Movimento de Resistência Islâmica”. O grupo entrou na política e venceu as eleições legislativas palestinas. Em 2007, após conflitos internos, assumiram o controle da Faixa de Gaza.
A resposta de Israel foram bombardeios e ataques terrestres à Faixa de Gaza. O país é acusado por organizações internacionais de crimes de guerra, como o bombardeio de hospitais e de campos de refugiados.
Desde o início do conflito, pelo menos 17 mil pessoas já morreram, 15.899 na Faixa de Gaza, segundo o Hamas, e 1.402 em Israel, conforme o governo do país. As informações de ambos lados não puderam ser confirmadas de maneira independente.
Com informações da CNN.
Ariel: Foram tempos muito difíceis marcados por atentados e muitas mortes. Em 2000 aconteceu a Segunda Intifada. Israel foi atacado com muita violência. Minha esposa estava prestes a dar à luz a minha filha, a gente morava numa região do lado de Jerusalém e ela teve que ser levada de jipe militar ao hospital, porque era perigoso um carro normal cruzar a região. Pouco depois, Gaza foi tomada pelo Hamas. Todo esse caos, aliado à saudade, fez com que em 2001 viéssemos para o Brasil.
Fadah: Em Gaza, a guerra sempre existiu, tanto que a região é considerada por muitos como a maior prisão a céu aberto do mundo. Mesmo os palestinos da Cisjordânia, como eu, não têm acesso à Gaza. O governo israelense instalou checkpoints pelo território palestino. É como se você saísse da zona sul de São Paulo para trabalhar no Brás e a estação do metrô fosse um ponto de revista com armas apontadas para você. Quando fui dar a luz ao meu primeiro filho, fui parada num checkpoint para o carro ser revistado, durante as minhas contrações.
Ariel: Nossa preocupação é constante com familiares e amigos, principalmente pelas notícias que chegam. Os filhos de dois amigos morreram em 7 de outubro. Eles estavam na rave. Eram muito jovens, tinham apenas 23 e 24 anos. O terrorismo é um problema social que o mundo tem que enxergar como tal. O impacto da guerra está sendo sentido por judeus do mundo todo, como o aumento do antissemitismo. Há muita ignorância e desinformação.
Fadah: Vamos supor que aconteça uma operação civil-militar em uma periferia: eu, no bairro do Brás, não posso fazer nada para chegar lá e prestar ajuda, sabendo que pessoas estão passando sede, fome, que não há energia, nem acesso a hospitais. Nos sentimos impotentes, culpados. Somos obrigados a assistir nossos irmãos sendo marginalizados sem poder fazer nada. Eu penso: ‘tenho comida enquanto as pessoas do meu povo estão passando fome’. Temos tentado atrair a atenção da mídia com protestos.
Ariel: Minha mãe mora em Israel. Felizmente, os integrantes do Hamas não chegaram até a cidade onde ela vive [Netivot, no sul do país], mas ela está trancada em casa desde então. Não sai com medo de novos ataques e porque mísseis não param de cair. É uma situação muito tensa. Já aconteceu de eu estar conversando com minha mãe, tocar a sirene de alerta e ela desligar correndo para buscar um lugar seguro para se esconder. A gente tem que continuar trabalhando, mas nossa cabeça está o tempo todo com nossos familiares e amigos, tanto da comunidade judaica de São Paulo como de Israel.
Fadah: Eu e os palestinos de São Paulo temos muito medo de perder amigos e parentes. Eu entro em contato com diariamente, especialmente com primas e amigas que têm filhos jovens, porque muitos jovens estão sendo presos sem motivo aparente. Eu peço a elas que os rapazes não saiam sozinhos e não estejam na rua depois das 17h, exatamente pelo medo de serem presos ou agredidos.
Ariel: Nossa comunidade tem presenciado o aumento de antissemitismo, que não ocorre só aqui, mas no mundo. Há pessoas que se manifestam não em prol dos palestinos, mas contra o povo judeu. Por isso o mundo tem acompanhado com preocupação o que acontece em Israel.
Fadah: Atualmente não andamos na rua com nenhum adereço palestino, temos medo de sermos repreendidos ou confundidos com terroristas. É um sentimento terrível. Fico pensando: ‘por que eu posso ser feliz e meus irmãos não podem ter nada?’ Estamos muito deprimidos com as coisas que estão acontecendo e isso atinge diretamente nosso cotidiano.
Repatriados
O Governo brasileiro enviou aeronaves da Força Aérea Brasileira para Israel e para o Egito, para repatriar brasileiros que vivem nos países em conflito. Ao todo, 1.410 pessoas que viviam em Israel conseguiram voltar para o Brasil e outras 32 na Faixa de Gaza, após meses de negociações diplomáticas.
Ariel: Damos apoio a pessoas em vulnerabilidade com entrega de cestas básicas e compra de medicamentos. Também encaminhamos quem precise para organizações de assistência mais específicas. Não é um trabalho apenas para a comunidade israelense, mas para qualquer um que precise. Estamos ajudando as pessoas que estão em Israel e perderam suas casas, seus familiares e ficaram sem nada. Estamos organizando um avião com uma carga grande de cobertores, roupa íntima, lençóis e toalhas.
Fadah: Temos contato com palestinos em situação de vulnerabilidade na Cisjordânia. Nossa comunidade – não só palestina, mas árabe – procura ajudar enviando cestas básicas, oferecendo apoio em dinheiro e financiando oportunidades de estudo. Não podemos ajudar diretamente enviando mantimentos para Gaza, porque qualquer pessoa que mandar ajuda para lá pode ser considerada terrorista. Sentimos culpa por não poder fazer nada.
Ariel: Infelizmente muitas mídias tomam lado, distorcem a realidade e não mostram os verdadeiros horrores que aconteceram no massacre de 7 de outubro. Entendemos que Israel está se defendendo e que não sairia atacando ninguém porque deu vontade, sem motivo.
Fadah: Eu vejo a mídia enfatizar os 1.400 mortos do lado israelense [no dia da ofensiva do Hamas], filmar as casas e os kibutz destruídos e mostrar a população amedrontada, mas com menos ênfase ao sofrimento e morte do povo palestino. Israel recebe ajuda militar estadunidense. Em Gaza, mais de 2 milhões de pessoas vivem em uma faixa litorânea pequena e estão se locomovendo para a fronteira com o Egito, porque a força israelense está entrando por terra. O jornalismo brasileiro cobre isso?
Terroristas?
Vale reforçar que oficialmente o Brasil segue a orientação das ONU, que não considera o Hamas um grupo terrorista, pela especificação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na lista de organziações consideradas terroristas estão grupos como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.
Ariel: A intenção de Israel não é eliminar os palestinos ou implantar um apartheid e sim combater o Hamas. O Hamas usa todos os recursos, milhões e milhões, para violência. A partir do momento que eles não tiverem dinheiro para se financiar, vão perder força.
Fadah: A população de Gaza é marginalizada, não tem perspectiva de desenvolvimento ou de melhora. Eles só comem, só bebem, só tem acesso a luz e água quando a força dominante proporciona. O povo palestino não é terrorista, é um povo acolhedor, que tem uma cultura e uma religião muito bonitas. Eu acredito que a paz só existe através de negociações, quando a gente acolhe em vez de excluir.
Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.
Jornalista e geógrafa, com foco em direitos humanos e ambientais. Reúno mais de 10 prêmios de reportagem, entre eles dois Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Atualmente é Editora na Agência Mural.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para [email protected]