Por: Vagner de Alencar
CrônicaOpinião
Publicado em 22.04.2019 | 11:18 | Alterado em 22.11.2021 | 17:03
“ATENÇÃO: SÓ PROSSIGA SE FOR FÁCIL ACESSO PARA VOCÊ”, anuncia, em caixa alta, questionário de processo seletivo na Mauricio de Sousa Produções
Tempo de leitura: 4 min(s)“Eu iria”, escreveu em sua página do Facebook, um ex-professor de Jornalismo, sobre uma vaga de auxiliar de comunicação na MSP.
Precisei abrir o link, um questionário de pré-seleção, feito no Google Planilhas, para identificar o nome da empresa — apesar de os personagens da Turma da Mônica, no cabeçalho, já insinuarem ser “Maurício de Sousa Produções”.
Assim como meu professor, pensei: “Caramba, eu também iria”. Afinal, como deve ser incrível trabalhar com as figuras que fizeram parte da sua infância, que até hoje estampam HQs e encantam crianças com histórias sobre a Magali, Cebolinha e Cascão?
Como, felizmente e por enquanto, continuo empregado, sempre tento compartilhar com amigos e colegas, sem a mesma sorte de receber salário todo fim de mês, oportunidades de emprego bacanas.
Imaginei que eles, assim como escreveu meu professor, pudessem “ir” adiante nessa candidatura. Mas me enganei.
Lucas, de Guaianases, no extremo leste, jamais teria chance; Luana, de Parelheiros, nas rebarbas da zona sul, tampouco; quem dirá Aline Kátia, moradora da Jova Rural, nos confins da zona norte de SP.
Das 28 questões do formulário, a maioria delas obrigatória, uma deixa explícita a intenção da empresa de Maurício de Sousa em não aceitar candidatos moradores das periferias da capital paulista.
Ela aparece no questionário após perguntas iniciais e básicas como nome, e-mail, RG e endereço.
Em caixa alta, e sem nenhum pudor aparente, o anúncio é feito:
O asterisco dá ao candidato a “chance” de indicar se ele gasta 30 minutos a 2h ou mais para chegar à MSP. Quanto pior o acesso, menor será a chance.
Talvez a empresa de Maurício de Sousa não saiba, mas o morador da zona leste de SP é o que mais sofre com distância até o trabalho.
Ou, talvez por saber, prefira não “correr o risco” de ter um funcionário que chegue atrasado por causa do trânsito.
Em fevereiro deste ano, Cleber Arruda e Lucas Veloso, repórteres da Agência Mural, publicaram esta notícia no 32xSP, site que cobre regionalmente a cidade a partir das 32 subprefeituras, no qual sou editor.
A pesquisa “Trabalho e renda”, da Rede Nossa São Paulo e Ibope, mostra que a população da região leste gasta, diariamente, 1h50 para se deslocar até o emprego. A média do município é de 1h43.
Certamente um tempo muito alto para o RH da empresa de Maurício de Sousa.
Esse índice, porém, é muito maior quando tratamos especificamente sobre mobilidade na cidade.
Na zona sul, moradores perdem 21 dias por ano no transporte público: são 2h05 diárias para realizar a atividade principal como ir ao trabalho ou à faculdade, por exemplo.
Quais seriam então as justificativas da empresa? Economia no vale-transporte do funcionário? Talvez menor chance de mais horas extras de trabalho?
Mas a mobilidade não é fator isolado na pré-seleção para ingressar na empresa do cartunista.
Para a vaga de auxiliar de comunicação, o candidato precisa indicar o nível do idioma inglês (de básico a fluente) e dizer se ainda possui conhecimento noutra língua.
Há dois anos, após me candidatar para uma vaga num importante instituto de educação do país e sequer ser chamado para a entrevista pessoal por afirmar não falar inglês fluentemente, escrevi o texto “Como posso ser fluente em inglês se nem minha vida é?”.
Recebi dezenas de mensagens acaloradas de pessoas agradecendo a publicação. Expondo a autocobrança e um fracasso que não são delas, que não é nosso.
Em 2017, a Turma da Mônica recebeu a Milena, a primeira personagem feminina negra de Mauricio de Sousa. Ação de diversidade insuficiente e aparentemente só no papel, já que a população afastada do escritório do cartunista, geralmente preta e periférica, é impedida de fazer parte do quadro de funcionários por causa do CEP.
Dois anos antes, uma pesquisa da Secretaria Municipal de Promoção e Igualdade Racial mostrou que a população negra está concentrada na periferia de São Paulo.
As regiões sul e leste encabeçam o ranking dos distritos com a maior quantidade de afrodescendentes.
Em Parelheiros, na zona sul, a taxa supera 57%, enquanto Pinheiros, na rica zona oeste onde também fica o escritório do famoso quadrinista, registra apenas 7,3% — uma diferença de quase oito vezes.
Não faço ideia de quantas pessoas pretas trabalhem na MSP, talvez a tia da copa ou o moço da limpeza, como geralmente costumamos ver em grande parte das empresas. Espero que estejam presentes em outros diferentes cargos, embora essa pré-seleção pareça não mostrar tal diversidade.
Conversando sobre esse processo seletivo com uma amiga moradora da Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade, onde há a menor oferta de emprego de SP, partilhamos de um sentimento em comum.
Sentimos como se estivessem o tempo todo nos impondo algum limite que parece apenas uma fronteira geográfica, mas não é.
“Você só pode ir e ser até aqui. Daqui pra frente não é espaço pra você.”
PERGUNTA FOI RETIRADA, DIZ MSP
A assessoria da Mauricio de Sousa Produções entrou em contato com a Agência Mural e afirma que retirou do questionário restrições sobre a distância da casa dos candidatos.
“Referente a publicação no site https://www.agenciamural.org.br/ha-vagas-na-turma-da-monica-mas-nao-para-candidatos-das-periferias-de-sp/#disqus_thread, esclarecemos que a Mauricio de Sousa Produções não faz restrições em relação ao endereço de moradia de seus candidatos. Sendo assim, para que não gere dúvidas, optamos por retirar este item do questionário citado.”
Vagner de Alencar é correspondente de Paraisópolis e editor do 32xSP
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Cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural. É jornalista graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutor em Educação pela PUC-SP. Foi correspondente de Paraisópolis e escreveu o livro "Cidade do Paraíso - Há vida na maior de São Paulo".
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