No Setembro Azul, mês da visibilidade da Comunidade Surda Brasileira, profissionais celebram as conquistas e apontam os desafios a serem enfrentados
Gabrielle Guido/Agência Mural
Por: Rosana Silva
Notícia
Publicado em 24.09.2021 | 3:49 | Alterado em 23.11.2021 | 18:52
Por volta dos 10 anos de idade, o auxiliar administrativo, professor e consultor de Libras Elinilson Soares, 39, que é surdo, conta que teve o seu primeiro contato com a música ao ver o Olodum, no Pelourinho. “Visualizava os instrumentos percussivos sendo tocados, sentia a vibração e aquilo me emocionava muito”, relata.
Aquela sensação se transformou em uma motivação profissional e Soares passou a se dedicar para que outros surdos tivessem essa emoção. Neste Setembro Azul, mês da visibilidade da Comunidade Surda Brasileira, e em especial o dia 26 de setembro, Dia Nacional dos Surdos, o consultor destaca a importância de ampliar os espaços para a comunidade.
“Precisamos de surdos ocupando os diversos cargos nas empresas, necessitamos de surdos empreendedores, artistas, na área da saúde e em todos os lugares, para que a gente consiga ter uma sociedade mais justa”, diz Soares.
E ressalta. “Temos muito orgulho da nossa cultura, da nossa língua. Temos surdos nas faculdades, no trabalho, envolvidos na política”.
Assim como Soares, outros profissionais das periferias de Salvador têm utilizado a arte e a música para transformar realidades. Moradora do bairro do Resgate, a psicóloga, professora, tradutora e intérprete de Libras Ana Paula Melo, 49, trabalha teatro e música com surdos em uma igreja. Ela destaca a importância da música para elas.
“Ao contrário do que muitos pensam, os surdos têm ritmo. Apesar de não escutar música, eles sentem a vibração. Uma estratégia é ter o tablado [do teatro] todo de madeira. Colocamos o som e eles percebem o ritmo pela vibração e dançam”, diz.
Ana Paula trabalha há quatro anos com o grupo de teatro amador conecTarte. “As peças são criadas pelos surdos. Há peças temáticas para o Dia da Criança ou Dia Nacional do Surdo, ou outro tema que eles achem interessante”, diz. O grupo celebrará o Dia Nacional do Surdo com a apresentação de uma peça teatral em um congresso on-line.
O gosto pela música fez com que a intérprete, tradutora, consultora em acessibilidade e CEO do Libras Mais, Eurides Nascimento, 40, levasse canções para as primeiras aulas na escola. “Eu sempre fazia [interpretação] e os alunos curtiam bastante”.
Além disso, Eurides realizava saraus de poesias para pessoas surdas e, com o projeto Bailando com as mãos, levava música para as crianças nas escolas. “Me vestia como uma boneca surda e fazia musiquinhas para os meninos, que saíam repetindo os sinais”, relembra as ações.
Entre 2016 e 2017, a moradora do bairro do Bom Juá começou a traduzir e interpretar músicas de artistas locais. “Quando eu comecei a fazer [tradução], tinham poucas pessoas em Salvador”, recorda Eurides.
Com a pandemia, ela disse observar o aumento da visibilidade para o uso de Libras na área artística. “Percebi que não estava só. Eu já faço escola. Muitos intérpretes, com esse recorte de mulheres negras, estão vindo e, às vezes, pela primeira vez fazendo a tradução”, diz.
Eurides também atua na formação para o trabalho de mulheres negras, sobretudo, mulheres jovens negras e surdas. “Esse recorte interseccional reforça a marginalidade que deixa essas meninas negras e surdas distantes de conseguir ascensão no trabalho e em outras áreas”, constata.
No Setembro Surdo, como também é conhecido o Setembro Azul, Eurides está realizando encontros virtuais para tratar da saúde mental das pessoas surdas, com foco no tema da regulação das emoções. As inscrições para participar das reuniões podem ser feitas pelo Instagram do Libras Mais (@librasmaisoficial).
DESTAQUE NAS LIVES
Assim como Eurides, Elinilson Soares também disse ter percebido mudanças significativas do uso das Libras (Língua Brasileira de Sinais) durante a pandemia, principalmente, com o crescimento da acessibilidade em plataformas digitais, como o YouTube.
“Houve um aumento de eventos de diversas áreas e linguagens, principalmente de conteúdos artísticos com intérpretes de Libras, o que foi despertando mais interesses de pessoas surdas”, afirma.
Nas lives e apresentações musicais, os intérpretes ganharam destaque nas telas. Ana Paula, que trabalhou em eventos on-line de música e poesia, usando a Libras, explica esse processo. “Quando uma live é programada, o material é entregue anteriormente. A gente já pode fazer uma pesquisa, um preparo e apresentar algo bem bacana para os surdos”, diz.
E ressalta que essa não é uma tarefa simples. “Interpretação de música é uma das coisas mais difíceis para mim. Não é fácil, por conta dessa questão da subjetividade. Isso demanda pesquisa e tempo. Tudo isso é muito novo para a gente, o processo de tradução artística aqui”.
Ela explica ainda que o ato de estudar sobre as canções com antecipação permite conhecer o ritmo, a velocidade com que o artista canta, entre outras percepções. “[Interpretar] um gênero musical não é um problema, mas a articulação da fala, porque precisamos compreender o que está sendo dito e a velocidade das palavras, por isso é importante ter o material para treinar”, diz.
Segundo Eurides, no processo de tradução de uma música, a primeira ação é ter empatia. “A primeira técnica é se colocar no lugar do surdo, em um processo de conhecimento linguístico, como também do conhecimento cultural. Então, a gente acaba fazendo a transposição de uma língua para outra”, conta.
Dentre as canções traduzidos e interpretadas por Eurides está “Acreditar”, da cantora Larissa Luz. “Para mim, pegar a música de Larissa e traduzir é um ato político. Elas não podem ficar privadas dessa poesia, desse texto”.
E confessa se envolver emocionalmente. “A escolha por trabalhos voltados para a questão da mulher negra, periférica e surda me toca demais”, diz.
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Como toda a língua, a Libras é uma língua visual-espacial articulada através das mãos, das expressões faciais e do corpo. E possui uma gramática própria. Além disso, existe a dimensão cultural que tem a ver com o modo que cada indivíduo enxerga o mundo, explicam os profissionais.
Diante das inquietações que surgem no processo da tradução e interpretação, a presença da pessoa surda é de suma importância. “Não tem como ser intérprete, ouvinte e descortinar essas questões dos surdos sozinha. Eu preciso estar com eles. Eles vão me falar como entendem, sentem a música”, acrescenta Ana Paula.
Elinilson Soares destaca que a presença da pessoa surda no processo da tradução aumenta as possibilidades de leitura da obra artística, além de tornar visível a cidadania dessas pessoas.
“É muito importante ter a presença de um profissional surdo no processo de interpretação, por conta do reconhecimento dos surdos, de suas competências e habilidades para atuar nos diversos espaços da sociedade”.
O consultor de Libras acrescenta a necessidade de tornar acessível aos surdos os conteúdos do campo das artes, a fim de “incentivar e estimular o envolvimento com as diversas linguagens artísticas, para que tenhamos mais agentes culturais e artistas com visibilidade na comunidade e que se tornem referências por seus trabalhos”.
Jornalista, correspondente de Pernambués/Cabula em Salvador, BA, desde 2020. Tem trabalhado em produções voltadas para arte, cultura e comunicação. Adora um cafezinho com cuscuz, um bom solo de violão e a luminosidade da cidade do São Salvador da Bahia.
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