Autores do livro foram parte de um projeto que buscava aproximar a universidade das comunidades em seu entorno
Viviane Nascimento
Por: Lara Deus
Notícia
Publicado em 18.03.2021 | 20:34 | Alterado em 07.04.2021 | 12:43
Quando Érica Peçanha, 40, entrou no ensino superior, no final dos anos 1990, o cenário era bem diferente. Moradora do Jaraguá, na zona norte de São Paulo, ela se formou em uma instituição particular e seguiu a carreira acadêmica, com mestrado e doutorado na USP (Universidade de São Paulo) quando ainda não havia ações afirmativas e poucos estudantes vindos das periferias.
Essa realidade, ao menos em parte, mudou.
Nesta sexta-feira (19), a antropóloga participa do lançamento do livro “Narrativas periféricas: entre pontes, conexões e saberes plurais”, obra que organizou e traz o relato de 45 alunos, em sua maioria, com origem nas periferias de São Paulo e de outras cidades.
Os participantes do projeto se dividem entre estudantes, professores, consultores e também moradores dos territórios pesquisados.
A obra é uma mostra de que ser morador de periferia e estudar na USP já não é para tão poucos. A reserva de vagas para alunos de escolas públicas, pretos, pardos e indígenas vem transformando as salas de aula da unidade desde 2017, quando foi adotada.
Se antes a cor e a origem dos estudantes de graduação tinham pouco contraste, as “cotas” fizeram com que o CEP dos que ocupam a principal universidade brasileira também mudasse. Mas ainda não mudaram completamente a desigualdade. “Temos dificuldades de ordem objetiva e subjetiva que têm a ver com questões estruturais”, aponta Érica.
“Narrativas periféricas” apresenta a percepção desses pesquisadores que atuaram em uma pesquisa de recenseamento em favelas São Remo, na zona oeste, e Jardim Keralux/Vila Guaraciaba, na zona leste. Ambas são vizinhas dos campus Butantã e Ermelino Matarazzo, respectivamente.
O grupo foi reunido durante o projeto DASP (Democracia, Artes e Saberes Plurais), realizado pelo IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP. Em 2018, o DASP se debruçou sobre as periferias a partir das ações idealizadas pela doutora em Serviço Social e ativista convidada, Eliana Sousa Silva.
“Eliana organizou uma equipe com pesquisadores e consultores majoritariamente de origem popular, negra e periférica”, conta Érica Peçanha.
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Entre as atividades organizadas pela ativista, estavam um ciclo de eventos sobre produção cultural nas periferias, uma plataforma digital que sistematizou as ações voltadas para estes territórios e um censo nas comunidades do entorno da Cidade Universitária, na zona oeste da capital, e na USP Leste.
Foi justamente o censo demográfico nestes locais que gerou a maior parte das reflexões sobre a interação entre universidade e periferias.
“Conheci partes da comunidade que não imaginava existir. Pude perceber que ela não é homogênea, algumas partes são mais desiguais que outras. Foi importante para que pudesse aumentar meu vínculo com o território”, conta no livro Kaio Gameleira, estudante de Gestão de Políticas Públicas e morador da Vila Guaraciaba, em Ermelino Matarazzo.
Os demais participantes do projeto vinham de outras bordas – em cidades, estados e até países diferentes – e mesmo assim encontravam similaridades entre onde cresceram e os locais pesquisados.
“Mergulho na realidade deles e vejo questões que remetem à minha própria família”, relatou no livro Jhonatan Ferreira Alencar, estudante de Gestão de Políticas Públicas e morador de Itapevi, na Grande São Paulo.
“Quantas vezes senti vontade de chorar ao ouvir mães falando sobre seus filhos e lembrar que estou longe da minha, e que ela deve sentir aquelas mesmas preocupações em relação ao filho que saiu de casa para poder ter acesso à educação”
COTAS E PESQUISA
A organização do livro não estava prevista no começo do projeto. A partir das reuniões que o grupo fazia, os participantes tinham reflexões em torno do acesso e da experiência universitária de negros, pobres e moradores de periferias na USP.
A Lei de Cotas no ensino superior foi criada em 2012 para universidades federais. No caso da USP, só em 2017 começou efetivamente a aumentar o número de negros, indígenas e estudantes de escolas públicas entre os alunos. No vestibular de 2021, os estudantes com estas características já foram metade dos selecionados.
No entanto, entrar na universidade é apenas o primeiro passo do percurso acadêmico.
Para seguir na área de pesquisa é preciso começar a fazer iniciação científica durante a graduação para depois fazer mestrado e doutorado. No entanto, a tarefa é complicada já que boa parte dos estudantes das periferias também divide a rotina com o trabalho.
“Como viabilizar o ingresso na pós-graduação se a maior parte das disciplinas é oferecida na parte da manhã ou da tarde, por exemplo? Como se preparar para um concurso docente tendo uma jornada de 40 horas semanais?”, questiona.
Apesar de acreditar na importância destas cotas para o ensino superior, Érica diz ser necessário a ampliação delas para os diferentes programas de pós-graduação e também para os concursos de professores. Segundo dados de 2018, apenas 2% dos que davam aula na USP eram negros.
Diante destas dificuldades, o caminho das pessoas que seguem como pesquisadoras em universidades públicas e têm origem periférica é muito parecido, mas não homogêneo. “Contextos histórico-sociais importam, assim como os suportes que conseguimos construir e mobilizar nesse percurso, como família, coletivos e amigos”, ressalta a pós-doutoranda.
Para quem deseja seguir a carreira acadêmica, Érica indica que esteja ciente de que as dificuldades são estruturais. “É preciso estabelecer contato ou se inserir em redes que possam gerar acolhimento, apoio e alternativas às dificuldades que enfrentamos.”
SERVIÇO:
Lançamento do livro “Narrativas periféricas: entre pontes, conexões e saberes plurais”
Dia 19 de março, 15h
Transmissão em http://www.iea.usp.br/aovivo
No evento online, o livro será disponibilizado em formato digital
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