Léu Britto/ Agência Mural
‘Fui iniciada com um ano e três meses e preparada para herdar a casa, mas não imaginava que seria aos 26 anos’
Por: Jacqueline Maria da Silva
Notícia
Publicado em 31.07.2025 | 17:32 | Alterado em 01.08.2025 | 8:15
Ojá, saia, bata e pano no ombro. A vestimenta tradicional de “baiana de Candomblé” é o traje quase que diário de Paula Egydio, 37, ou mãe Paula de Iansã. De pés descalços, em sinal de respeito, ela anda pelo chão vermelho do barracão do terreiro de candomblé queto Axé Ilê Obá, na Vila Facchini, no Jabaquara, zona sul da capital paulista.
Lá ela é Ialorixá. “É a mãe dos orixás, em Iorubá. Na hierarquia é quem comanda toda a estrutura litúrgica, da tradição de culto e cultura dos orixás”, explica.
Preparada ainda na infância para assumir o cargo, foi consagrada à sombra de um Irôko -árvore considerada sagrada- para Iansã, com um ano e três meses de vida. Desde então, passou a participar de ritos da cultura dos orixás. Isso porque os conhecimentos sobre a tradição do candomblé são passados por meio da oralidade dos mais velhos do axé ao mais jovens.
Uma função que nem todos assumem, por ser intensa e árdua, de abdicação pessoal. Paula, que hoje vive em Diadema, passa a maior parte do tempo no terreiro, entre trabalhos administrativos e leitura de búzios.
São necessários pelo menos sete anos de vivência e conhecimento didático para ser mãe de santo (Ialorixá) ou pai de santo (babalorixá). Como uma hierarquia, o processo começa na iniciação ou consagração ao orixá que rege a pessoa. Depois vem o trabalho em diversas funções no terreiro, considerada uma etapa do desenvolvimento mediúnico.
Terminou a faculdade de fisioterapia, mas recusou uma vaga oferecida por seu professor, justamente para ajudar a mãe na administração do terreiro, chegando a cursar um MBA em gestão empresarial. Da administração passou para a liderança espiritual, onde está há 11 anos, após a morte de mãe Sylvia de Oxalá, em 2014.
Entrou por um caminho sem volta, como ela mesma gosta de dizer: foi designada pelos orixás e confirmada pelos búzios. Uma aceitação que só veio no momento em que percebeu que alguém precisava continuar o legado.
“Quando eu vi minha mãe no caixão, falei: “Não tem como não assumir, sabendo de toda história que eu tive, que eu vivenciei com a mãe Sylvia, sabendo de toda a luta e resistência do meu o tio-avô pai Caio de Xangô, fundador da casa. Sou muito feliz. Eu falo que ser Ialorixá é minha maior vocação”.
Mãe Paula à frente dos tronos e imagens de pai Caio de Xangô, fundador da casa, e mãe Sylvia de Oxálá @Léu Britto/ Agência Mural
“O Candomblé é uma das religiões mais humanistas do mundo. Aqui, todos os seres vivos são bem-vindos", diz mãe Paula @Léu Britto/ Agência Mural
Árvore Iroko, onde mãe Paula foi consagrada à Iansã na infância @Léu Britto/ Agência Mural
Mãe Paula em frente ao Ariaxé, ponto de força do terreiro, representando pela coroa - um dos elemento de Xangô, orixá que reje o terreiro @Léu Britto/ Agência Mural
Um terreiro de história
Em 2025, o Axé Ilê Obá completou 75 anos – 50 deles na periferia do Jabaquara e 35 de tombamento histórico. Foi o primeiro terreiro de São Paulo e o segundo no Brasil a ser tombado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). O título foi conquistado com muita luta de mãe Sylvia de Oxalá, que posicionou o terreiro como um espaço de pesquisa sobre religiões de matriz africana e de debate e luta contra o racismo religioso.
Quando o pai Caio de Xangô fundou o Axé Ilê Obá, em 1950 vislumbrava sua continuidade, mas não teve herdeiros diretos para continuar o legado. Com isso, após a morte do babalorixá, a sobrinha Sylvia Egýdio ou mãe Sylvia de Oxalá, assumiu os trabalhos em 1986, aos 51 anos.
Por conta de uma histerectomia, Sylvia não pôde ter filhos biológicos e acabou adotando um menino e uma menina, aos 52 anos. Paula chegou com dias ao terreiro, onde a mãe morava, mas só soube da adoção aos 5 anos.
“Minha mãe foi me preparando para este momento de revelação. Eu sempre perguntava ‘mãe, por que sou branca e a senhora é preta?’, ela falava ‘filha, a cor não diz nada, mas o amor diz tudo. Você é muito mais minha filha, porque você não veio somente da minha barriga, você veio da parte mais sagrada que é o meu coração”, lembra com carinho.
Mãe Sylvia de Oxalá @Arquivo pessoal
Mãe Sylvia de Oxalá com a filha Paula, ainda criança, durante ritos da casa @Arquivo pessoal
Mãe Sylvia abraça a filha Paula de Iansã já adulta @Arquivo pessoal
Beatriz de Oxum. “Ela é uma criança que parece que já veio preparada”, diz Paula @Arquivo pessoal
Presente e futuro: a terceira e quarta geração de liderança do Axé Ilê Obá @Arquivo pessoal
Mãe Paula representa a terceira geração do terreiro, a segunda mulher na liderança, sucessora de mãe Sylvia de Oxalá, não apenas na espiritualidade, mas também na luta contra o racismo, fundamental na sua posição como Ialorixá em uma religião de matriz africana.
“Os orixás não te escolhem pela cor, mas pela vocação, axé, amor ao próximo e respeito à ancestralidade. Eu nunca saberei o que é racismo estrutural, mas quero entender e combater. Estou aqui para somar com às causas pretas”.
Assim como sua mãe, ela também iniciou a filha cedo, com um ano e nove meses. Diferente da Paula que assumiu aos 26 anos, a expectativa é que a filha, Beatriz de Oxum, hoje com 3 anos, assuma a Casa por volta dos 50, após ter vivenciado diferentes fases da vida.
Quem foi a mãe Sylvia de Oxalá?
Com profundo conhecimento da religião, Sylvia recebeu na Nigéria o título de Íyánífá, um sistema religioso africano. É citada com carinho no livro “Renda Básica de Cidadania” pelo ex-parlamentar Eduardo Suplicy (PT), amigo pessoal e aliado na luta por igualdade racial.
Hoje, é uma referência e faz parte da história do Jabaquara, que já foi quilombo de passagem na época da escravidão. Faleceu em 2014, aos 78 anos e, por sua liderança, um centro cultural inaugurado no distrito em 1980 recebeu seu nome, tornando-se Centro Municipal de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá.
Ela será a quarta geração de líderes do Axé Ilê Obá e a terceira de mulheres. “O candomblé é uma religião matriarcal, onde o poder da feminilidade é que dá a vida e o renascimento para cada membro daquele terreiro”, ressalta.
Segundo a mãe, Beatriz já mostra compreensão pela tradição e experimenta com naturalidade a ritualística do Candomblé no barracão. “Durante o abate religioso, ela mexe com cuidado e amor no ejé, o sangue em iorubá. Ela é uma criança que parece que já veio preparada e a ancestralidade vai dar essa condução de uma forma alegre, feliz, harmônica para minha filha”, espera orgulhosa.
Jornalista, vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para [email protected]