Só posso falar desse meu lugar, que sempre foi meu, que sempre estive, que sempre vivi. Meu lugar de homem preto, morador da periferia de São Paulo. É daqui que, olhando pra mim e para a experiência sensorial transcendental que tive, que consigo, ao menos um pouco mais, me re-conhecer. Um momento lindo e único que obtive uma súbita percepção sobre a minha existência preta e toda a carga de minha ancestralidade.
Dançávamos, sim, dançávamos. Coreografia afro, tambores afros tocando alto, num espaço potente de vida e resistência, num espaço acolhedor, no Aparelha Luzia, Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã, um “quilombo” no centro da cidade, abrigando os periféricos da norte, da sul, da leste e da oeste, dançávamos. Meu corpo seguia a coreografia, eu suava, o tambor falava alto. Eu tinha vergonha em certos momentos, tentava não pensar no julgamento que eu julgava que os outros poderiam ter sobre mim. Cabeça pensa demasiado e desnecessariamente, mas o corpo sabe, o corpo lembra. Corpos pretos lembram! Eu dançava e o tambor tocava alto, a cabeça queria entrar, mas ali não era pra ela, não tinha espaço pra ela, cabeça reclama e vaga.
Sempre gostei de dançar, isso não quer dizer que eu dance bem, mas nunca dancei pleno, sentia meu corpo amarrado, preso, peso que não era meu, porque eu gosto de dançar, mas havia o maldito daquele fardo.
‘Que porra é essa’? Minha cabeça volta a querer o protagonismo no Aparelha Luzia, naquele lugar de proteção e resistência, mas o Ilu Inã tocava alto, havia sorrisos e gritos de incentivo, nós dançávamos e suávamos, e o corpo novamente ganha a frente. Acerto o passo, sorrio e sigo dançando, troco, comungo. A coreografia desmonta meu corpo forjado, violentado pelo maior crime da história da humanidade, meu pé pra frente e pra trás, os braços em curvas sinuosas, quase femininos, o quadril se soltando no ritmo dos tambores e a coluna trabalhando em torções, rotações e planos, de novo pleno.
Eis que a cabeça vem à frente com força, agora ela está em conexão com o corpo, agora ela entendeu tudo e num átimo de segundo vem muitas lágrimas aos meus olhos. As retenho, não deixo cair. Aprendi cedo, nas ruas de terra da periferia da zona norte, dessa minha periferia que me moldou, tão igual e tão diferente das outras, aprendi aqui que lágrimas de homens pretos periféricos não podem regar o chão. Seu suor sim, e também seu sangue que rega fartamente. As paredes finas dos barracos de madeira aqui nas nossas periferias não abafam o soluço de choro, mas aconchegam e dá descanso, escondem as feridas. Sigo dançando e entendo tudo, meu corpo preto.
Meu corpo preto carrega séculos de opressão, de violência física, de violência psicológica. Corpo de homem preto, sujeito a séculos de trabalhos forçados, trabalhos inumanos, trabalhos ininterruptos, meu corpo negro carrega em si a carga da escravidão, um corpo escravizado, violentado. Não há como não entender agora. Meu corpo preto estigmatizado. ‘Tenho que ser forte’, ‘tenho que trabalhar duro’, ‘tenho que ser o macho super sexualizado’. Ao longo dos séculos, com o fim da escravidão, ao menos no papel, mais estigmas criados nos amarrando mais e mais. O ‘marginal’, ‘violento’, ‘vagabundo’, ‘criminoso’, ‘preguiçoso’, ‘ameaçador’, ‘inferior’, ‘limitado’ e o meu corpo preto se escondeu, se encolheu, cada vez mais pra baixo de toda essa sujeira. Malocaram-nos nas bordas, nas ruas mal iluminadas das periferias tentam nos calar, o esgoto correndo a céu aberto pra acabar com nossa dignidade e autoestima, a falência da educação como projeto para nos barbarizar.
Quem disse que homem preto não rebola? Dancemos!
Dancei, dancei como nunca dancei e me apaixonei por tudo e por todos. Minha ancestralidade! Percebi que aquela dança já estava em mim, por baixo de todo aquele peso, por debaixo de todos aqueles nós cegos, debaixo de todas as cicatrizes das chibatas, debaixo de todo entulho social, embaixo de todo o concreto, minha dança ancestral estava lá.
Cada giro, cada torção, cada movimento de braço, cada rebolada tirava de cima de mim esse excesso, e a cabeça entendeu, mas o corpo entendeu primeiro. Meu corpo preto sabe, do jeitinho dele, meio duro, meio sem ritmo, mas ele sabe, porque essa herança vem de longe, vem de antes da chibata, vem de antes desse lugar do qual vos escrevo aqui, esses ecos em meu corpo preto vem de África, dos meus ancestrais que cantavam, tocavam e dançavam louvando a liberdade plena.
Tudo isso me veio ali, dançando com o Ilu Inã, na Aparelha Luzia. E agora escrevendo aqui eu penso: quem sabe quanto tempo leva pra tirar séculos de opressão sobre um corpo preto, sendo que a opressão ainda está ai? Será que realmente dá pra tirar tudo? Porra, por que eu não deixei minhas lágrimas caírem?
Sigo dançando, sigo tocando e tirando o entulho. Me re-conhecendo e lutando contra as estatística com meus trinta e sete anos de existência. Muitas coisas a descobrir sobre o meu corpo preto da periferia de São Paulo, escravizado outrora, estigmatizado, violentado sempre, mas que segue resistindo, existindo, em busca da plenitude. E da próxima vez, deixarei sim minhas lágrimas caírem. Quem disse que não pode?
*AparelhaLuzia, Rua Apa, 78, Campos Elíseos –São Paulo, SP.
*Ilu Inã, Bloco Afroafirmativo ministra aulas às segundas-feiras na Aparelha Luzia, das 19 às 22hrs. Os ensaios acontecem aos domingos às 17 hrs no mesmo local.
André Santos é correspondente do Jardim Fontalis, zona norte de São Paulo.
[email protected]
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para [email protected]