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Nós, Mulheres da Periferia e a cobertura em São Paulo

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Por Aline Kátia Melo | 04.09.2018

Publicado em 04.09.2018 | 17:28 | Alterado em 22.11.2021 | 16:11

RESUMO

Desde 2014, “Nós Mulheres da Periferia” trabalha com pautas relacionadas às desigualdades de gênero e renda presentes em São Paulo

Tempo de leitura: 6 min(s)

Este artigo foi publicado originalmente na revista Pueblos, da Espanha, em parceria com a Agência Mural. 

Em uma tarde ensolarada de sábado, a jornalista Lívia Lima preparava o almoço em sua casa na zona leste de São Paulo, Brasil. Com uma lata de cerveja na mão, Livia também cuidava da roupa na máquina de lavar e participava de uma reunião para cumprir um desafio: colocar em palavras o que significa ser uma mulher da periferia.

Era dezembro de 2013. Livia recebia um grupo de amigas, também jornalistas e moradoras das periferias, no quintal dos fundos de sua casa. Cada uma dizia uma frase. De vivência em vivência foi criado um dos primeiros textos do coletivo, chamado carinhosamente de “Manifesto”.

“Somos quem vai ao posto atrás de remédio e pra agendar consulta pra daqui a cinco meses. Somos quem cria os abaixo-assinados para pedir creches. Somos quem trabalha em mutirão carregando bloco e fazendo marmita. Somos quem denuncia que a vizinha apanha do marido. Somos amor, perdão, paciência, doçura, fortaleza. Somos esperança. Somos Nós, mulheres da periferia!”.

Sempre que esse texto era lido novamente em algum evento, as pessoas ficam emocionadas, aplaudem. Choram as integrantes do coletivo lendo e a plateia ouvindo, sem imaginar como tudo isso surgiu.

Três meses depois daquele encontro na casa de Lívia, em 8 de março de 2014, foi lançado o coletivo Nós, Mulheres da Periferia. Primeiro, com uma página no Facebook. Depois, com um site.

Dois anos antes, em março de 2012, cinco jornalistas da periferia publicaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo sobre o que era ser mulher na periferia. Elas faziam parte de um blog que buscava notícias nas áreas pobres da cidade. Este blog deu origem à Agência Mural.

“Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de fotografia, balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos cria constrangimento. No happy hour, é comum escutar: “Lá entra carro? Essa hora é perigoso. Quer dormir na minha casa”. Trabalhamos perto, trabalhamos longe, dirigimos carros, usamos ônibus. Somos várias, diferentes histórias, o mesmo lugar. É impossível nos reduzir a um estereótipo.”, dizia o artigo.

“Foi uma oportunidade interessante de poder escrever, e não ser fonte. A gente escreveu as nossas percepções sobre o que era ser mulher da periferia”, relembra a jornalista Bianca Pedrina, 34, uma das autoras do texto. “O mais bacana foi o retorno depois disso”, explica ela. “Entendemos que havia um vácuo de informação quando se falava de mulher e periferia, sobretudo com o recorte que a gente aborda de gênero, raça e classe”.

Quando as autoras se depararam com a repercussão deste artigo, passaram a criar um projeto para produzir artigos e reportagens sobre a vida destas mulheres.

A desigualdade está expressa nas estatísticas sobre gênero no país. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), homens gastam 10,5 horas por semana cuidando da casa e dos filhos, enquanto as mulheres passam 18,1 horas.  Ainda de acordo com a pesquisa, o rendimento médio mensal no Brasil é R$ 2.306 para homens e R$ 1.764 para mulheres.

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Coletivo foi formado após artigo escrito em 2012 sobre a vida das mulheres nas periferias de São Paulo (Divulgação)

COMEÇO

O grupo começou com oito jornalistas e uma designer, todas moradoras de bairros da periferia do município de São Paulo e das cidades próximas.

A primeira reportagem do site foi um especial sobre moradia. Depois, elas escreveram sobre trabalho doméstico e sobre a vida de mulheres negras.

Em 2015, o coletivo obteve financiamento público para a realização do projeto “Desconstruindo Estereótipos: eu mulher da periferia na mídia”. Ao longo de três meses, elas deram oficinas para mulheres das periferias falarem e debaterem como viam sua própria imagem refletida na mídia.

Mais de cem mulheres, entre 17 e 92 anos, participaram dos debates, exercícios de retrato e autorretrato, com telas de pintura e câmeras fotográficas. “Na época estava depressiva, e através dos momentos juntas, consegui me liberar, contar minhas experiências, expressar meus sentimentos. Enxergamos que podemos tudo, nos empoderamos, nos tornamos guerreiras com vontade de crescer e lutar contra os preconceitos, violência, e tantas outras adversidades que querem nos atingir”, comenta Estefânia Félix, de 53 anos, uma das participantes.

As integrantes mantêm o projeto em paralelo a seus trabalhos regulares. “Vivemos muito em trânsito, trabalhamos no centro, moramos em bairros-dormitório”, explica Bianca. “A gente fica pouco no território. Foi importante vivenciá-lo com as mulheres mais velhas, que não necessariamente acessam a internet, e ouví-las questionando coisas importantes, deixando elas falarem sobre o que é ser mulher na periferia e como elas se veem retratadas na mídia”, prossegue.

Como parte do mesmo projeto, foram feitas nove entrevistas mais longas com moradoras das periferias. Na maioria das falas estavam presentes os desafios de lidar com uma sociedade desigual, racista e machista, mas ao mesmo tempo deparar com a força, irreverência, e batalhas travadas para manter a sobrevivência neste espaço.

“A gente não foi ali para ditar como elas deveriam ser enxergadas. Muitas vezes, a gente ouviu coisas que a gente não acreditava que fossemos ouvir, como a reprodução de machismos, mas muitas também saíram para um patamar de aprimoramento da sua condição enquanto mulher e moradora da periferia, o quanto isso dita a vida delas, o simples fato dela ser mulher e o local onde ela mora”, conta Bianca.

“Então pelo menos nas oficinas elas puderam se enxergar, porque a correria do lavar, passar, da jornada tripla não possibilita que elas se enxerguem dessa maneira”

O projeto foi concluído no final de 2015 com a realização da exposição multimídia “Quem Somos [Por Nós]”, em novembro, no bairro da Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo.

A exposição trazia material produzido pelas mulheres participantes das oficinas: autorretratos pintados em tela, retratos feitos com as câmeras fotográficas, cartazes e instalações com falas das mulheres durante as oficinas e pequenos vídeos com trechos das nove entrevistas individuais que poderiam ser assistidos em monitores.

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Coletivo foi formado após artigo escrito em 2012 sobre a vida das mulheres nas periferias de São Paulo

NÓS CAROLINAS

Em 2016, o coletivo foi aprovado em outro edital público e obteve financiamento para a realização do documentário “Nós, Carolinas”, com quatro das nove mulheres entrevistadas no projeto anterior. O trabalho deu origem a um curta metragem, no qual quatro mulheres de bairros e idades diferentes falam aos espectadores sobre suas experiências de vida e de temas como racismo, solidão, maternidade e autoestima.

Segundo o Mapa da violência de 2015, organizado com apoio da ONU, entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no número de assassinatos de mulheres negras. No mesmo período, a taxa de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%.

“Ter participado me possibilitou ver melhor a questão de como nos enxergamos. Somos acostumadas a nascer, crescer, trabalhar e viver sem prestar atenção na gente. Já passei por essa fase”, conta a auxiliar de educação Tarcila Pinheiro, 33, uma das entrevistadas.

“Percebi que a minha história não é única. Uma mãe solteira que procura melhorar  através do estudo, do trabalho, cuidar dos filhos, conciliar tudo. Tomar consciência do quanto é dura a nossa vida diária, tentar fazer alguma coisa é um ato de resistência muito grande”, explica Tarcila.

O nome “Nós, Carolinas” surgiu de duas homenagens: a primeira para uma das protagonistas, chamada carinhosamente de Dona Carolina. A outra menção é para escritora Carolina Maria de Jesus, moradora da antiga favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, que após muita insistência conseguiu transformar seus diários sobre o cotidiano da favela no livro “Quarto de Despejo – O Diário de uma Favelada”, lançado em 1960.

Lívia Lima lembra com carinho desse processo. “Desde as oficinas, nos envolvemos com as mulheres e as histórias de vida delas, os laços afetivos que construímos. Conseguimos uma troca muito grande com mulheres jovens e mais velhas, homens, professores, educadores, comunicadores”, diz.

O documentário foi lançado em 2017, mais uma vez em um dia 8 de março, marcando o Dia Internacional da Mulher. Após a estreia, o filme ficou em cartaz em diferentes regiões de São Paulo, priorizando bairros de periferia, principalmente os das protagonistas. Depois o filme foi exibido em diversos espaços, debates e reuniões. Ele pode ser assistido aqui.

DIREITOS HUMANOS

Em 2018,  o coletivo ganhou o edital “Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos” para fazer uma reportagem investigativa sobre o atendimento ginecológico recebido pelas mulheres da periferia no SUS, o serviço público de saúde do Brasil, prevista para ser finalizado no segundo semestre do ano.

“Estamos percorrendo mais os nossos territórios, entendendo essa realidade, que é de nossas mães, e não necessariamente as nossas, porque muitas de nós temos convênio”, diz Bianca Pedrina, integrante do Nós.

A apuração buscará entender a razão das falhas do serviço, conhecido por ter longas filas e espera de meses por consultas. “Há uma tendência de precarizar para que a gente cada vez mais vá para o privado, pague e a saúde se torne mercadoria”.

A produção do Nós, Mulheres pode ser acompanhada pelo site e pelo Facebook do projeto.

Aline Kátia Melo é correspondente da Jova Rural
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