Milena Vogado/Agência Mural
Por: Milena Vogado
Notícia
Publicado em 06.02.2024 | 11:31 | Alterado em 06.02.2024 | 14:04
“Ninguém sabia o que estava acontecendo, ninguém sabia o que ia mudar e ninguém sabia como isso ia afetar a gente”, conta Izabelly de Jesus Almeida, 18, sobre como foi o período em que fez o Novo Ensino Médio. A estudante acabou de se formar no 3º ano do ensino médio na escola estadual Professor Moacyr Campos, ou Mocam, como a comunidade escolar carinhosamente apelidou a instituição localizada no Aricanduva, na zona leste de São Paulo.
A escola possui dois blocos com aproximadamente 30 salas de aula, três quadras esportivas, hortas e mais de 2.000 alunos matriculados, que cursam do ensino fundamental 2 ao ensino médio, entre os períodos da manhã, tarde e noite. Além disso, também há turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos).
A instituição adotou a reforma do Novo Ensino Médio logo no início da implementação do projeto em 2022. A Agência Mural foi conferir como foram esses dois anos por quem sentiu na pele as alterações.
Estudantes que tiveram de fazer o vestibular no ano passado sentiram o impacto das mudanças e não conseguiram se preparar, fizeram aulas que não escolheram e sentiram até mesmo a saúde mental afetada.
Os estudantes podem optar entre diferentes itinerários, que têm como base cinco áreas do conhecimento: ciências humanas, ciências da natureza, língua portuguesa, matemática e educação profissional.
No Mocam, os alunos do 1º ano do ensino médio têm as disciplinas da formação básica (aquelas anteriores à reforma), e também algumas aulas do Programa Inova Educação, que contempla Eletivas, Projeto de Vida e Tecnologia & Inovação.
Já no 2º ano, em que escolhem qual área pretendem seguir, há quatro opções de itinerários. E no 3º ano, por fim, é quando eles têm menos contato com os assuntos mais exigidos nos vestibulares, e quando têm mais itinerários a cumprir: são oito ao total.
Uma das principais bandeiras do projeto do Novo Ensino Médio é a liberdade de escolha que o estudante tem sobre seu futuro, por meio de itinerários formativos. No entanto, na prática é bastante diferente.
Muitos alunos acabaram cursando um itinerário que não escolheram, como é o caso de Mylene Moreira, 17, que se formou no 3º ano do ensino médio do Mocam em 2023.
A jovem, que pretende cursar farmácia no ensino superior, sempre teve mais afinidade com a área de ciências biológicas. Foi esse o itinerário que ela escolheu, mas Mylene conta que acabou em uma turma de ciências humanas e linguagens, com aulas sobre “direitos que transformam”, “diálogos com direitos humanos” e “pluralidade cultural.”
Com Izabelly, aconteceu o contrário: ela optou por estudar ciências humanas e linguagens, já que pretende estudar ciências sociais no ensino superior. Porém, acabou em uma turma de ciências biológicas e exatas, onde permaneceu durante todo o 2º e 3º ano do ensino médio.
Izabelly ainda que viu estudantes sendo “jogados no que sobrou”, e casos em que os alunos desconheciam o funcionamento do itinerário ou simplesmente não tiveram a oportunidade de escolher. “Ninguém teve escolha nenhuma”, afirma. “Acabou que o Estado escolheu o que a gente iria estudar”, ressalta Mylene.
Para Izabelly, o impacto foi grande, e afetou a saúde mental e a produtividade dela. “Estudar coisas que você não gosta no ensino médio é normal, porque é uma grade curricular que você tem que seguir, e você não vai gostar de 90% das coisas, mas você tem que fazer”, diz.
“Mas pelo menos tem essas matérias [de humanas] que gosto, é o motivo de eu estar indo para a escola. Quando tudo isso acabou, e só comecei a ter matérias obrigatórias, foi um baque tão grande, tão grande”, desabafa a estudante, com a voz embargada.
Em agosto, Izabelly passou pelo momento mais difícil, quando não conseguia ir para escola. “Fiquei doente fisicamente. Não conseguia ir para escola, passei duas semanas de atestado porque eu não conseguia encontrar ânimo para ir”, conta.
Sem estudar o que planejavam, as alunas sentiam medo de não conseguir ir bem no vestibular. Os receios tinham fundamento.
Mylene, por exemplo, teve a impressão que os itinerários não bateram com as provas deste ano, especialmente com o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e o Provão Paulista – o exame que foi feito justamente para os estudantes da rede estadual.“Mesmo eles falando que o Provão Paulista daria mais oportunidade para os estudantes, não caíram temas relacionados aos itinerários”, diz a aluna.
Segundo ela, o que salvou foram professores que escaparam do conteúdo programático para dar questões coerentes com essas provas. “Graças a essa atitude [dos professores] que eu consegui algumas questões do Enem, mas se fosse pelo que foi ensinado através do itinerário, eu não conseguiria acertar essas questões.”
Para Izabelly, havia uma sensação de desespero imenso porque sabia que o que estava estudando não ia cair no vestibular. “Se quisesse passar na faculdade que eu queria, tinha que estudar. Também não tinha tempo, porque precisava conciliar trabalho com escola”, conta a estudante, que começou a trabalhar como babá no 2º ano do ensino médio.
Ela lembra que, no ensino médio antigo, o estudante tinha uma base do que cairia no vestibular.
“O ensino médio em escola pública não era bom, não era fácil você passar em uma universidade pública estudando a vida toda em uma escola pública, mas você tinha pelo menos uma base, e até ela foi tirada”
Izabelly, estudante da zona leste de São Paulo
Educadores ouvidos pela Agência Mural citaram que as mudanças tendem a afetar mais estudantes de escolas públicas, com relação ao acesso ao ensino superior. O vestibular para as universidades brasileiras continua muito focado nas disciplinas do ensino básico, aquelas do antigo ensino médio.
Para o aluno da rede pública, o cenário pode ser desastroso, já que ele dificilmente vai conseguir fazer um cursinho. No caso dos estudantes de escolas particulares, a perspectiva é outra. O educador Daniel Cara explica que essas instituições têm condições de implementar os itinerários sem prejudicar a formação geral básica.
‘As escolas privadas vão continuar conseguindo prestar o Enem. A gente viu isso no último exame: o resultado dos estudantes das escolas públicas foi pífio, porque eles não tiveram uma série de conteúdos’
Daniel Cara, educador
O número de novos cotistas nas universidades federais sofreu a maior queda em dez anos, apontou um levantamento recente do Inep (2023). Foram 108,6 mil calouros cotistas em 2022, 16 mil a menos do que no ano anterior, o que representa uma queda de 13%, a maior em uma década.
“A democratização da educação gerada pelas cotas está sendo desconstruída pela reforma [do ensino médio]”, analisa Daniel.
Jefferson Ramos, professor de história no Mocam, lamenta ao afirmar que os alunos que vão tentar a universidade pública, não vão ter acesso. “O objetivo, na minha opinião, é que não entre alunos da rede pública no ensino da Fatec, USP, Unifesp, Unicamp… não há interesse [do poder público]”, diz.
Vale destacar que Mylene e Izabelly representam exceções no Mocam. Isso porque a grande maioria dos jovens não têm interesse em cursar um ensino superior. O professor Jefferson estima que apenas de 20% a 30% dos estudantes da escola têm esse objetivo.
Para Daniel, a reforma tenta desconstruir as perspectivas da juventude – tempo que, mais tarde, não é possível recuperar. “É um cerceamento de perspectiva. Mais do que roubar corações, mentes e almas, ela imediatamente mata as perspectivas”, aponta.
Uma série de mudanças estão previstas para o Novo Ensino Médio. O Projeto de Lei 5230/23, proposto pelo governo federal, é uma alternativa ao proposto em 2017.
A proposta modifica pontos como carga horária, disciplinas obrigatórias, formação de professores e os chamados “itinerários formativos”. A ideia é recompor as 2.400 horas anuais para as disciplinas obrigatórias e sem integração com curso técnico. Atualmente, as escolas devem destinar 1.800 horas anuais para as disciplinas obrigatórias e o restante, de 1.200 horas, para os itinerários.
A ideia é reduzir os impactos da mudança. Com a reforma atual, os estudantes ainda têm a parte obrigatória, de formação básica, mas com uma carga horária menor do que no antigo ensino médio. No caso de língua portuguesa, por exemplo, o Novo Ensino Médio reduziu de cinco para duas aulas semanais, conta uma professora do Moacyr Campos, que preferiu não se identificar.
De acordo com ela, com essa redução, é impossível trabalhar um conteúdo que antes, em cinco aulas, já não havia como dar conta devido a defasagem. “O que foi difícil para mim em 2023 foi passar o mínimo de conhecimento das séries anteriores, para que eles entendessem e dessem continuidade”, relata.
Uma das educadoras da instituição, que prefere se manter em anonimato, acredita que as alterações podem ajudar, mas não tanto quanto precisa. Para ela, a reforma do ensino deve acontecer, mas de maneira gradativa. “Não pode ser uma mudança brusca como foi agora”, comenta.
“Não é que eu seja contra o Novo Ensino Médio, é que a maneira como ele foi implantado vai aumentar a desigualdade social – e não é a longo prazo. Eles [estudantes da rede pública] estão ficando cada vez mais para trás”, diz a professora.
A Mural entrou em contato com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo sobre o relato das estudantes. A gestão diz que “após escuta com estudantes, professores e especialistas” fará mudanças para este ano.
Entre as alterações, estão a redução dos itinerários formativos de 12 para 3: Ciências da Natureza e suas Tecnologias + Matemática; Linguagens e suas Tecnologias + Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; e Ensino Profissionalizante.
“Além disso, a reformulação incluirá as chamadas disciplinas de caráter comum, que serão cursadas por todos os alunos a partir da 1ª série dessa etapa escolar, entre elas as de educação financeira, projeto de vida e redação e leitura”, ressalta a pasta.
A gestão diz que a formação geral básica, que engloba disciplinas tradicionais como matemática e língua portuguesa, continuará presente em todas as séries.
A assessoria de imprensa informou ainda que, no caso da Escola Estadual Moacyr Campos e a troca de itinerários, os estudantes foram realocados de acordo com o número de vagas disponíveis.
Apaixonada pela comunicação desde pequena. Por isso, não deu outra: hoje é jornalista, redatora e roteirista. Com interesse especial na área de direitos humanos. Correspondente do Aricanduva desde 2023.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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