Por: Tamiris Gomes
Crônica
Publicado em 06.05.2022 | 16:08 | Alterado em 06.05.2022 | 16:14
Marta Maria Gomes da Silva, filha de Margarida Maria Gomes da Silva e pai desconhecido por mim, nasceu e cresceu nas periferias de Poá e Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Sabia ler e escrever, mas não completou os estudos nem nunca pisou numa universidade. Trabalhou como vendedora em uma loja de roupas chiques até os 36 anos, a idade em que morreu. Marta é minha mãe.
Estava no primeiro dia de aula da quinta série, com 12 anos, quando me contaram a notícia de que ela havia “dormido para sempre”. Sem entender muito, fui a responsável por escolher uma roupa para que ela pudesse estar confortável nesse “evento”. Achei justo optar por um vestido tão bonito quanto aqueles que ela vendia na loja em Suzano. Era verde-água, longo, com alguns paetês.
Naquele momento não chorei, porque ainda estava meio anestesiada. Há 30 dias já não falava com ela, pois minha mãe estava na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) em um hospital público da região. Por complicações no coração, ela teve um derrame durante o expediente e foi socorrida ali mesmo, no local de trabalho.
Logo depois da morte, minha avó me deu duas folhas de caderno brochura cheias de exercícios de matemática da pré-escola, feitos de lápis pela minha mãe quando criança. A vó guardava as folhas amareladas como um tesouro e me presenteou como se fosse o que de mais valioso realmente tivesse sobre minha mãe – ainda as guardo.
Por não ter tido esses acessos, minha mãe depositava em mim toda uma expectativa educacional que não pôde alcançar (como boa parte das famílias periféricas, cuja nossa geração é a primeira a entrar no ensino superior).
Marta me comprava livros de lógica, diários para eu escrever memórias, uma máquina de escrever de tinta e carbono (prevendo que seria jornalista), jogos que envolviam pintura, me levava ao cinema. Até me deu uma surra por eu não saber a tabuada toda. Consequência ou não, a educação foi um guia que ela me deixou.
Enterramos minha mãe e em um curto período de tempo também a minha avó, Margarida.
De origem indígena, minha avó tinha os cabelos pretos lisos enormes, nasceu na roça, numa cidadezinha do agreste pernambucano chamada Orobó. Amava plantas e no seu quintal (em Jundiapeba, periferia de Mogi das Cruzes) tinha árvores frutíferas de várias espécies, ervas e tudo mais. Também teve um derrame e ficou com metade do corpo sem movimento.
O luto veio à prestação. Perdi as mulheres mais importantes da minha vida ainda na adolescência. Em meio à pandemia, se falou muito sobre os lutos enfrentados.
Parte de nossos vínculos viveu (ou vive) uma perda recente. Os meus lutos começaram bastante cedo e seguem. E nesse processo, fui acolhida por outras mães.
Uma delas é Simone Almeida, minha professora na época da igreja (evangélica) e também madrasta. Nosso primeiro contato de amizade foi justamente num Dia das Mães. Em comunidades religiosas, geralmente são feitos cultos de homenagem às mães, com músicas, mensagens e oração. Pela primeira vez, eu não tinha uma mãe para entregar uma rosa, e ela veio me confortar.
Também foi a minha madrasta que esteve comigo na primeira visita a um ginecologista. Antes disso, ela participou de meu drama após a primeira menstruação. Foi a primeira pessoa a quem contei sobre, tirei dúvidas e chorei. Simone é casada com meu pai até hoje.
Na oitava série em uma escola pública em Poá, a professora de biologia Joana Darc, que morava em Calmon Viana, também foi uma das mulheres que me inspirou e ensinou. Nunca tinha falado sobre sexo com ninguém até aquele momento e, em sala de aula, ela conversava com os alunos sobre esses temas sem tabus.
Um dia, pediu que todas as meninas pegassem um espelhinho em casa e examinassem seus corpos, olhassem cada parte (a vagina, principalmente) e trouxessem as dúvidas no dia seguinte. Ela ensinou que aprender sobre sexo e sexualidade não é um problema, é preventivo.
Poderia citar outras tantas que ajudaram a “formar” a Tamiris que sou hoje, mas paro por aqui. Em resumo, o Dia das Mães de quem não tem uma é um misto de saudade e celebração. Ressignificar o que foi dor para algum tipo de memória afetiva e canalização de força vinda das mulheres que fizeram nossa história (vivas ou não).
Editora-assistente da Agência Mural. Fã de cinema, poesia e barulho de mar. Cofundadora e correspondente de Poá desde 2011
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