Por: Humberto do Lago Müller
Notícia
Publicado em 12.05.2022 | 9:50 | Alterado em 16.05.2022 | 11:32
Quando chegou em Mairiporã há oito anos, o chefe de cozinha e produtor cultural Ricardo Maciel, 52, sentiu uma ausência. “Sempre estive relacionado com a natureza daqui, mas com o tempo fui sentindo uma ausência de presenças negras, na área cultural e de participações dos negros na sociedade”, conta.
Conforme passou a atuar na cidade da Grande São Paulo, ele percebeu que essa situação não era por acaso e podia ser marcada no fim de um marco da população descendente de escravizados na região: a Igreja e o Largo do Rosário.
Demolida nos anos 1970, o templo já teve ao menos três réplicas diferentes para representar esse símbolo de resistência dos movimentos negros do município e simboliza os obstáculos para preservação dessa memória.
Erguida em meados de 1860, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito foi por mais de 100 anos um marco na paisagem de Mairiporã, ainda na época chamada de Juquery.
Em pontas opostas da mesma rua, a atual XV de Novembro, a Igreja do Rosário e a Matriz de Nossa Senhora do Desterro eram o reflexo de uma sociedade dividida: de um lado a igreja dos brancos, dos coronéis e donos de terras por toda a Cantareira, e do outro, a igreja erguida por negros escravizados e alforriados.
Contudo, o destino das duas igrejas mostra as diferenças da sociedade. Hoje apenas uma permanece de pé, ainda que descaracterizada, a igreja matriz. Já a Igreja do Rosário foi demolida após obras feitas na região.
“Como se derruba um templo? E essas pessoas que tinham um vínculo com ele? Onde estão? Como se sentem com tamanha agressão?”, questiona Maciel.
“É algo que mancha a imagem da história da cidade. É muito raro, ainda mais no Brasil, um país tão católico, você ver uma igreja derrubada assim. Mas esse era um templo de origem preta, e o racismo ainda é muito latente”, ressalta o produtor, que está à frente de um movimento de resgate cultural chamado Samba do Rosário.
Essa cena de apagamento começa em 1974, quando Mairiporã passava por profundas transformações, dentre elas a construção do Sistema Cantareira, que garante o abastecimento de água de boa parte da Grande São Paulo.
Apesar da importância do sistema, ele levou ao declínio econômico da região, já que centenas de olarias, que eram a principal atividade produtiva do período, foram inundadas com as águas da represa.
Em busca de retomar o crescimento da cidade e seguindo a onda de mudanças que chegaram com a inauguração da rodovia Fernão Dias nos anos 1960, foi dada a largada para que a cidade enfim tivesse o primeiro terminal rodoviário.
O terreno escolhido foi o histórico Largo do Rosário, de onde já partiam linhas de ônibus para outras cidades por conta da proximidade com a rodovia. A desapropriação seguiu seu curso nos anos seguintes. Começava assim a saga de destruição e reconstrução da igreja que já foi um símbolo da cidade.
Dois anos antes da demolição, um susto. Em julho de 1972, um caminhão sem freios invadiu de ré os fundos da igreja destruindo o altar e parte dos santos lá presentes.
O então prefeito, Luiz Salomão Chamma, já planejava a desapropriação do terreno alegando que o local estava no caminho dos veículos. A demolição foi em 1974, na gestão de Aloysio Arnaldo Salotti.
Por quase 20 anos, a cidade permaneceu remoendo os acontecimentos até que em 1992 uma réplica da igreja foi inaugurada atrás da então rodoviária como maneira de compensar o ocorrido. “Quando cheguei aqui havia uma igrejinha cercada de arame e a rodoviária antiga”, conta a sindicalista Rosa Marina da Costa, 73.
Nos anos 2000, a cidade viveu um novo “boom” populacional e a antiga rodoviária, agora obsoleta e em péssima condição, se viu no centro de mais uma revolução. O terminal foi enfim demolido entre 2011 e 2012 e a obra de revitalização da praça também incluiu a demolição da pequena capela.
“Muita gente sequer sabia que ali era a Praça do Rosário, muitos chamam de antiga rodoviária, algo que nem existe mais”, ressalta Rosa.
Houve então a cobrança para a reconstrução da capela e, pouco tempo depois, uma nova versão foi erguida no local. Porém veio uma nova polêmica. A nova igreja em nada lembrava a original, ou mesmo a réplica anterior. Foi então que em 2018 uma nova obra, custeada pela igreja, levantou uma quarta versão da capela, desta vez mais próxima da original, ainda que muito menor.
Agora, os grupos que atuam na cidade querem garantir que esse espaço sirva para resgatar a memória da população negra da cidade.
“Antes de tudo, este local [a Praça do Rosário] é um memorial. Dentro da minha visão, ali pode ser o primeiro local tombado de Mairiporã”, defende Maciel.
“`Precisa de uma política de restauração, não do que foi derrubado, mas do que ele representa. Mairiporã precisa fazer essa retratação a todo instante, e uma dessas retratações foi através do samba”
Ricardo Maciel
O Samba do Rosário teve a primeira edição em 2018 com a ideia de ocorrer mensalmente, mas foi interrompido pela pandemia de Covid-19. No último dia 9 de abril, o samba voltou, desta vez encabeçando a primeira Feira Preta da cidade.
“Chegamos a conclusão de que em Mairiporã existe a necessidade desse trabalho. Trouxemos as pessoas para discutir a cultura e a arte negra”, completa Rosa.
Junto com Maciel e Rafael Torres, ela é uma das idealizadoras do movimento. “Começamos a fazer os eventos ali quando houve uma mudança e agora está se tornando conhecida. As pessoas se perguntam o porquê daquela réplica de igreja, e a história é de se revoltar, nos causa mal estar quando lembramos que ali foi um espaço criado para os negros, um lugar de resistência. Não podemos arredar pé dali”, completa.
Durante todo o sábado a Feira Preta reuniu gastronomia, artesanato, música e cultura e contou até mesmo com um desfile de moda. O evento contou com a exposição de pequenos empresários, a maioria formada por mulheres pretas.
É o caso da artesã Juliana da Silva, 38, a Juliana Najú. “Meu trabalho é todo voltado para este tema. Sinto que o negro não está inserido em todos os lugares quando deveria e aqui vejo que a galera está participando, conhecendo a história de Mairiporã.”
Desfile de Moda durante a primeira feira preta de Mairiporã @Humberto do Lago Muller/Agência Mural
Juliana da Silva, artesã, ao lado do seu trabalho @Humberto do Lago Muller/Agência Mural
Samba do Rosário em apresentação na praça @Humberto do Lago Muller/Agência Mural
Artesanato marcou a primeira feira preta de Mairiporã @Juliana Najú
Terceira réplica da igreja, inaugurada em 2018 após polêmica com a anterior @Humberto do Lago Muller/Agência Mural
Esta também é a opinião da artesã Bruna Dom, 32, que veio do Jaraguá, zona norte da capital, para participar da feira.
“A importância para o povo preto é imensa. Se eles falam que nós somos todos iguais, que nos deem a mesma oportunidade”
Bruna Dom
“É um ato de resistência,você sente uma energia diferente. Não é à toa. Penso no que já aconteceu nesse lugar. A energia é forte. O sangue da gente reconhece, né?”
Para o ator Higor Pinheiro, 25, que frequenta os eventos do coletivo desde o início, o Brasil ainda não respeita sua memória. “É importantíssimo o resgate, este lugar onde a feira está acontecendo. Poder ter esse momento aqui é fundamental para olhar para o passado, corrigir os erros e melhorar pra frente.”
Além da história da Igreja do Rosário, outra capela importante para a comunidade negra veio ao chão nos anos 1990. Tratava-se da igreja de Santa Cruz e Nossa Senhora do Rosário na Mata Fria, região que fica no limite entre Mairiporã e o município de São Paulo.
A capela, que foi construída em data desconhecida por ex-escravizados liderados por Amaro Bento Luiz (figura conhecida das histórias da região) foi vendida pela então cúria diocesana de Bragança Paulista para a construção de um clube de recreação. Da igreja sobraram apenas o sino e uma imagem de bronze.
Apaixonado por animais, desenho, fotografia, natureza. Praticante de turismo sem roteiros, conhecedor de escadões e mirantes. É logo ali! Correspondente de Mairiporã desde 2013.
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