Qual deve ser o futuro das periferias e como vamos avançar na qualidade de vida? Pesquisadores das periferias que têm pensado nessas questões lançaram uma cartilha para discutir soluções para os problemas vividos nas quebradas de São Paulo.
O documento com o título “Propostas para as Periferias” reúne 55 ações necessárias e foram pensadas por 35 pesquisadores de diferentes regiões da capital que fazem parte do CEP (Centro de Estudos Periféricos).
O professor Tiaraju Pablo de André, 38, coordenador do grupo, explica que o documento é um manifesto político e pedagógico, que pensa sobre o futuro do município. “A cartilha convida as pessoas a pensar a cidade daqui a 20 ou 30 anos. Que tipo de vida queremos nas quebradas? Como garantir dignidade e bem-estar sem repetir os erros do passado?”, questiona Tiaraju.
Cada texto traz uma provocação sobre o que significa viver com dignidade nas bordas urbanas, e como o poder público pode aprender com quem já cria soluções cotidianas.
Trecho da cartilha elaborada pelo CEP @Reprodução
O conteúdo abrange dez áreas fundamentais para o cotidiano das periferias: cultura, gênero, habitação, participação popular, transporte, educação, infância, saúde, trabalho e racismo/violência.
ALGUMAS DAS PROPOSTAS DA CARTILHA
Cultura
Disputar e acompanhar o orçamento municipal destinado à produção cultural periférica
Gênero
Implementar as Comunas da Terra, assentamentos rurais para produção agroecológica, cooperativismo e organização política.
Habitação
Adotar o modelo de autogestão da produção habitacional em larga escala, com autonomia dos agrupamentos populares.
Participação Popular
Criar as Casas de Conselhos para organizar as periferias, integrando aspectos materiais, educativos, artísticos e afetivos
Transporte
Implementar a Tarifa ZERO e/ou PASSE LIVRE para o TRABALHADOR, garantindo o transporte como direito social.
Segundo os pesquisadores, as periferias paulistanas sempre foram espaços de criação, solidariedade e resistência, mas suas vozes ainda encontram barreiras para ocupar o centro do debate público. O CEP surgiu com a ideia de mudar esse cenário.
Cartilha Propostas para as periferias @Tiaraju Pablo D’Andrea/ Divulgação
Formado por professores, estudantes e militantes, o grupo vinculado à Unifesp Zona Leste transforma a universidade em um espaço de diálogo direto com os territórios.
‘A universidade ainda é muito distante das periferias. O CEP nasceu para propor novas formas de conhecimento, baseadas na escuta e na experiência dos territórios. A ideia é pensar o Brasil a partir das bordas, não do centro’
Tiaraju, professor do Centro de Estudos Periféricos
Para Giovanna Feitosa Barbosa D’Amaral, 21, pesquisadora do CEP e coordenadora dos cursos de extensão na Ocupação Cultural Coragem, essa aproximação entre universidade e as periferias nasce de uma vivência coletiva.
“A maioria dos pesquisadores do CEP mora e vive a realidade das periferias. Esse é o DNA do CEP — pesquisar a partir do lugar em que a gente pisa”, conta ela, que vive em Itaquera, zona leste.
Marx Pereira, Tiaraju Pablo e Giovanna D’Amaral, coordenadores do Curso Reflexões Periféricas @Mônica Antônio/ Divulgação
A cartilha é resultado de anos de pesquisa e convivência nos territórios. Inspirada pelo livro “Reflexões Periféricas”, lançado em 2023, a publicação traduz para uma linguagem acessível as ideias que nasceram dentro da universidade, mas que se consolidam na prática cotidiana das quebradas.
As ideias vão desde políticas de habitação e transporte até ações de fortalecimento cultural e ambiental, sempre com foco na autonomia comunitária.
Outras propostas
Trabalho
Criar um Sistema Público de Trabalho, Emprego e Renda para promover o trabalho como direito fundamental e ampliar a seguridade social
Violência, genocídio e racismo
Instituir um Observatório de Denúncia para monitorar e denunciar as ações da polícia militar
Saúde
Universalizar o SUS por meio de ações que abranjam as necessidades diversas de todos os cidadãos
Educação
Promover a Construção Coletiva do Projeto Político Pedagógico em diálogo permanente com a comunidade
Infância
Criar Espaços Multi-Educacionais Populares como polos de formação cidadã, convivência social e integração à rede de proteção infantil e adolescente
Também citam a criação de centros de cuidado infantil próximos das casas, a ocupação de imóveis ociosos, o incentivo a coletivos culturais, a valorização do trabalho informal e o fortalecimento da saúde mental.
“Tudo o que está ali nasceu da prática. Não se trata de um documento técnico, mas de um material político, pensado por quem vive o que estuda. É um instrumento para pressionar o poder público e mobilizar as comunidades”, explica o coordenador.
Trecho da publicação @Reprodução
A vivência de Giovanna mostra como esse movimento se concretiza na ponta. Ela coordenou o curso de extensão do CEP realizado na Ocupação Cultural Coragem, que reuniu militantes, professores e lideranças comunitárias em 12 encontros ao longo de um ano.
“O curso abriu 80 vagas e todas foram preenchidas em dois dias. Isso mostra o quanto as quebradas têm sede de conhecimento e de troca. Foi um espaço de aprendizado mútuo, onde a gente não leva o saber acadêmico para a periferia, mas constrói junto”, afirma.
Ela explica que o projeto só foi possível graças a um edital da Prefeitura de São Paulo, que garantiu recursos para alimentação e distribuição gratuita dos livros “Reflexões Periféricas”.
“O maior desafio é o acesso a recursos. A gente tem muitas ideias e oportunidades, mas falta tempo e estrutura para inscrever os projetos. Mesmo assim, o curso mostrou que existe uma rede viva e potente que acredita na educação popular”, conta.
Jovens ativistas que acompanharam o lançamento da Cartilha
Os eixos de gênero e infância ganham destaque na publicação, não apenas como temas isolados, mas como atravessamentos de toda a proposta. Para o coordenador, reconhecer o papel das mulheres e das crianças na organização das periferias é fundamental para repensar a cidade de forma mais justa.
“As mulheres sustentam o dia a dia das periferias. São elas que cuidam das crianças, organizam o território, enfrentam as ausências do Estado”, diz Tiaraju.
Giovanna reforça esse olhar, destacando que o trabalho do CEP une educação, política e cultura popular:
“A gente não quer bater de frente com a cultura dominante, porque é uma disputa desigual, mas queremos incentivar a produção cultural nas periferias, fortalecer o que já existe e criar espaços onde as pessoas possam se reconhecer.”
Giovanna complementa que o maior desafio agora é furar os muros da universidade e da internet, para que o conhecimento chegue de fato a quem mais precisa. Ela cita que na internet, muitos artigos acabam restritos ao meio acadêmico e que o desafio é fazer com que essas ideias circulem.
“A gente tem uma grande rede com movimentos sociais e cursinhos populares, mas ainda é difícil chegar na dona Maria de Guaianases ou de São Mateus”, ressalta.
Mais do que apontar falhas do Estado, o material reconhece a potência dos territórios periféricos como espaços de invenção e resistência. “A periferia se move quando o povo se junta. O Estado precisa fazer sua parte, mas nada substitui o poder da comunidade organizada”, diz Tiaraju.

