Eles não escolheram a rua, mas se acostumaram com ela. Não possuem responsáveis legais, mas conquistaram o carinho do bairro.
Karine Gomes/Agência Mural
Por: Karine Gomes
Notícia
Publicado em 21.03.2025 | 11:34 | Alterado em 21.03.2025 | 11:44
A vira-lata Princesa é a companhia fiel do coletor de reciclagem Edson José, 64. Todos os dias, ela o segue pela manhã enquanto ele começa as tarefas de recolher materiais no Grajaú, no extremo sul de São Paulo. À noite, encontra abrigo na casa da aposentada Laia Gomes, 68.
Apesar da proximidade, Edson e Laia não são os tutores legais de Princesa. Ela é, na verdade, um animal comunitário, ou seja, não tem um único responsável, mas estabelece laços de afeto com diversos moradores da região.
“A Princesa sai com o Edson todos os dias. Sete horas da manhã, ela já está acordada, enroscando as patas na porta, ansiosa para acompanhá-lo. É como se fosse um trabalho dela. Eu até brinco dizendo que, se ela fosse funcionária de uma empresa, seria a mais pontual!”, diz a dona de casa Laia, com um sorriso no rosto.
Princesa tem 12 anos e vive no Grajaú @Karine Gomes/Agência Mural
Animais sem tutor são uma realidade comum em diversas cidades. Nas periferias, além dos diversos casos de abandono, há também várias situações em que a comunidade se une para cuidar de forma coletiva dos pets que não tem um lar.
Princesa nasceu em 2012, da cria de uma outra cachorrinha comunitária chamada Mia. A família de cães era ainda maior, com mais dois vira-latas: Billy, que foi abandonado pela antiga tutora, e Clotilde, irmã mais velha de Princesa. Infelizmente, os três já faleceram.
“Era uma família bem unida, sempre andando para lá e para cá. Todos eram muito espertos”, lembra Laia.
Patrícia Simões, 52, também tem um carinho especial pela Princesa. Ela conta que já tentou adotá-la, mas sem sucesso.
“Princesa está acostumada com as ruas. Eu já tenho muitos gatos e cachorros em casa, e ela se dá bem com todos, mas não fica presa de jeito nenhum”, diz Patrícia, rindo.
Patrícia conheceu Princesa por meio da mãe dela, Bete Simões, que alimentava a cachorrinha todos os dias e também foi responsável pela castração dela. Bete faleceu recentemente.
“Minha mãe dava comida para ela e para outros cães que andavam com ela. Todos os dias, a Princesa vinha até o portão, comia e ia embora, desaparecendo pelo bairro”, conta Patrícia.
Princesa, a cachorra que recebe cuidados dos moradores do Grajaú @Karine Gomes/Agência Mural
Embora tenha um carinho imenso por Princesa, Patrícia alerta para o fato de que a convivência com esses animais não deve ser romantizada. Ela se lembra, com tristeza, do fim de Clotilde, irmã de Princesa.
“As duas eram inseparáveis. Um dia, elas saíram como de costume, mas a Clotilde não voltou. Dias depois, soubemos que ela havia morrido após ingerir lixo envenenado na rua”, lamenta Patrícia.
Ao contrário de Princesa, o cachorro Pirata tem um território bem definido: o terminal Grajaú. Todos os dias, o motorista de ônibus da Viação Grajaú, Itamir Lourenço, conhecido como Ted, é recebido por Pirata, que se tornou uma espécie de segurança do terminal.
“O Pirata é o porteiro do terminal. Todos os funcionários o conhecem, e se um estranho aparecer, ele vai logo latindo, defendendo seu território”, brinca Ted.
A relação de Pirata com os funcionários é tão próxima que o cão consegue até distinguir quem é da empresa. “Se ele te estranhar, vai começar a latir, mas se você mostrar o crachá, ele entende que você é funcionário e deixa passar”, conta o motorista, rindo.
O motorista da Viação Grajaú Ted e o cachorrinho Pirata são amigos inseparáveis @Karine Gomes/Agência Mural
Pirata chegou ao terminal ainda filhote e nunca mais foi embora. Ele foi alimentado pelo casal de supervisores Marcelo e Adriana e, com o tempo, ganhou uma casinha e até roupinha de frio.
“Pirata chegou junto com a Neguinha, outra cachorrinha comunitária. Eles eram inseparáveis e adoravam comer abelhas, principalmente a Neguinha, que ficava com a boca toda inchada depois. Ela foi adotada por uma vendedora do terminal, e Pirata ficou”, explica Ted.
Após o falecimento de Marcelo, no final do ano passado, Pirata passou a ser cuidado pelos encarregados João e Betinho, mas, segundo Ted, todos no terminal ajudam de alguma forma.
“Todos os motoristas, cobradores e seguranças ajudam a cuidar dele. Pirata é muito querido por todos”, afirma Ted.
O termo animal comunitário é reconhecido até mesmo por lei no estado de São Paulo, na legislação que trata da reprodução dos pets.
Princesa e Pirata são exemplos de cães que têm o carinho de uma comunidade, mas muitos animais de rua não têm a mesma sorte. Sem o apoio de tutores ou de um grupo de pessoas dispostas a cuidar deles, muitos enfrentam dificuldades extremas, como fome, sede, maus-tratos e risco de doenças.
Pirata é conhecido pelos funcionários como o “dono” do Terminal Grajaú @Karine Gomes/Agência Mural
Em contato com a SMS (Secretaria Municipal de Saúde), a Mural solicitou dados atualizados sobre animais abandonados em São Paulo, mas o órgão informou que não há estudos oficiais sobre esse assunto, pois os animais costumam se deslocar de uma região para outra, o que dificulta a contagem precisa.
A SMS explicou que os animais comunitários são frequentemente confundidos com aqueles que têm tutores, o que torna o levantamento de dados mais complexo.
Além disso, a pasta informou que desenvolve programas de castração gratuita, como o Programa Permanente de Controle Reprodutivo de Cães e Gatos, para reduzir a superpopulação de animais abandonados. Desde 2001, mais de 1,6 milhão de animais foram esterilizados. O objetivo é realizar cerca de 100 mil castrações por ano.
Esses animais também recebem vacinas, microchips e o RGA (Registro Geral do Animal). O atendimento ocorre em clínicas contratadas e em mutirões realizados em áreas de maior exclusão social. As solicitações de castração podem ser feitas online ou presencialmente, por meio do Portal SP 156.
Jornalista graduada pela Universidade Cruzeiro do Sul. Interessada na causa social e animal. Desde a infância esteve voltada para questões sociais, antes como beneficiária, hoje no campo de fala. Correspondente do Grajaú desde 2022.
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