Por: Evelyn Fagundes
Notícia
Publicado em 14.11.2022 | 14:48 | Alterado em 17.11.2022 | 12:56
Na quarta-feira (16), será lançado o filme “Racionais: das ruas de São Paulo para o mundo”, na plataforma de streaming Netflix. O lançamento vem no momento em que os rappers celebram 20 anos do principal álbum do grupo, responsável por marcar a vida de vários jovens das periferias.
Trata-se de “Nada Como Um Dia Após O Outro Dia”, quinto álbum da banda, lançado em 27 de outubro de 2002.
Com 21 faixas e dividido em dois volumes – “Chora Agora” e “Ri Depois” –, este é o maior disco do quarteto, com canções como os clássicos Negro Drama, A Vida é Desafio e Jesus Chorou.
Para Amailton Magno de Azevedo, doutor em história e especialista em música negra, é com esse material de estúdio que o Racionais MC’s consolida a cena do rap nacional da época com o “rap político”. “Isto é, o rap de afirmação, de orgulho negro, que afirma a presença negra orgulhosa altiva, bela e desavergonhada”, comenta.
Os próprios membros do grupo, como o DJ KL Jay e o vocalista Mano Brown, também enxergam a importância da obra por essa ótica. Em entrevista publicada em 2017 pela Trip TV, KL Jay assumiu que, apesar de “Sobrevivendo no Inferno (1997)” ser um álbum clássico, é o disco de 2002 que solidificou a carreira do Racionais.
“Considero esse o maior disco. Ele foi de A a Z nas ideias dentro do contexto da quebrada, do que é de respeito mesmo, do que é de verdade mesmo, do que vai ficar para sempre, do que não é nada daquilo e nóis não quer mais”, comentou Mano Brown em um mini documentário sobre as três décadas do Racionais MC’s.
Mas qual o impacto dessa obra para uma geração que nasceu nos anos 2000? A Agência Mural conversou com alguns moradores das periferias da capital paulista e da Grande São Paulo que nasceram próximos a data de lançamento do disco para compreender como escutar o álbum desde a infância influenciou na vida deles.
Letícia Alves, 20, estudante de administração e moradora da Cidade Dutra, na zona sul de São Paulo, nasceu no mesmo período que o álbum. Apesar de ter crescido ouvindo as músicas desse trabalho, foi com a maturidade que ela pôde fazer relações sobre a própria realidade e as letras do rap.
“[O álbum] foi fundamental para entender como as coisas funcionam para além do que meus olhos de criança viam. A gente cresce ouvindo, mas só depois vai entender. Mesmo quando eu não entendia, já achava o som envolvente”, afirma.
Apesar de ter crescido em uma família em que metade dos membros são negros, a negritude não era um assunto falado abertamente nos encontros familiares. Foi somente ouvindo a faixa “Negro Drama” que ela pôde entender mais sobre a complexidade de ser negro na sociedade.
“Fui crescendo e tentando entender onde pertenço, onde as pessoas vão querer me colocar e entender que posso me colocar para dominar um espaço que dizem que não é meu. A música fala muito sobre entender que você é mais do que dizem”, aponta.
Letícia acredita que o álbum se destaca de outros, inclusive da cena do rap, por ser um relato muito próximo dos moradores.
“[O álbum] é atemporal. Mesmo 20 anos depois, a gente consegue ver que reflete muitas coisas. Algumas mudaram, mas outras não, principalmente as críticas políticas”
Letícia Alves, 20, estudante de administração
Morador do Grajaú, também na zona sul da capital, o analista de customer care [atendimento ao consumidor] Erick Maia, 20, também cresceu ouvindo o disco e destaca que o álbum foi um marco para que ele pudesse compreender a importância de defender o lugar onde mora.
Para ele, a canção preferida do álbum é “A vida é desafio”. “Gosto dela por conta do motivacional que está por trás”, conta. A música aborda sobre questões como os sonhos em meio ao racismo, assim como as perspectivas de futuro, que será “consequência do presente”.
“A gente entende que, para nós, sempre foi um pouco mais difícil, mas que a gente não pode desistir dos nossos objetivos. Essa é a música que mais me representa porque sou muito sonhador”, conta.
Maia afirma que conheceu o disco a partir de um primo mais velho e que hoje ele cumpre esse papel de compartilhar as canções com o irmão mais novo de sete anos. “Às vezes escuto em casa e meu irmão já vai ouvindo para começar a ver como é a realidade. Já cresce escutando, assim como comecei quando era pequeno”, diz.
A fotógrafa Isabella Aparecida, 20, moradora do bairro Cocaia, em Guarulhos, na Grande São Paulo, também apontou o Racionais MC’s como uma escola que a ensinou a reagir perante as opressões.
“As canções chegaram na minha vida muito antes de qualquer coisa que a escola ou a faculdade poderiam prover para mim”
Isabella Aparecida, 20, fotógrafa
“Escutar esse álbum parece que é um processo. O primeiro de entender tudo que estou passando, tudo que já passei, para depois conseguir olhar e ter uma perspectiva de futuro”, comenta.
Estudante de ciências sociais na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), ela estuda as temáticas do grupo dentro de uma disciplina da grade curricular – o que, para ela, reforça a importância da representação da realidade feita pelo quarteto.
“Estudar Racionais dentro da universidade tem sido muito precioso. Poder retornar essas vivências das canções agora em outros espaços, em um espaço muito mais opressivo, que é o acadêmico, têm sido uma experiência desafiadora, mas necessária”, explica Isabella.
Assim como a maior parte dos entrevistados, o rapper Adler Martins, 28, mais conhecido como Loucoala Mc, afirma que as primeiras experiências ao ouvir o “Nada como um dia após o outro dia” foram por meio de amigos ou ao escutar na rua quando carros passavam tocando as faixas.
“Por volta dos 12 ou 13 anos criei um entendimento sobre as músicas e a realidade. Foi muito importante ter esse estalo. A partir de muitos acontecimentos do cotidiano, vêm de frases do Racionais na mente”, conta o morador de São Mateus, na zona leste de São Paulo.
O rapper diz que canção “Negro Drama” passou a ter um significado maior para ele recentemente, quando se entendeu como negro e assumiu o cabelo black. A compreensão sobre a negritude veio a partir das conversas com colegas de trabalho que sempre falavam sobre a diáspora negra – (a nova identidade criada por negros espalhados pelo mundo, após a imigração violenta durante a escravidão).
A percepção sobre ser negro também ocorreu para o rapper por conta de uma situação de racismo que sofreu em um supermercado:
“Fui acusado de roubar algo que eu estava comprando. Cheguei em casa e vi um vídeo do [cantor] Seu Jorge recitando ‘Negro Drama’ e aquilo ficou ecoando na minha cabeça e me inspirou a escrever um som que leva esse mesmo nome”, afirma o músico sobre a canção em que desabafa sobre a vivência como negro na sociedade.
Analisando as mudanças desde o lançamento do disco até os dias atuais, no que tange as pautas da luta antirracista e de empoderamento periférico, Loucoala Mc e Erick Maia também vêem pouca mudança. “A gente ainda está no mesmo lugar. Precisamos fazer com que as pessoas entendam nossas lutas”, discorre o rapper.
“Hoje o antirracismo ganhou um pouco mais de força porque temos as redes sociais para divulgar e ter mais notoriedade. Mas ainda acho que a evolução nesse sentido ainda não foi tão grande, mesmo assim a gente não pode desistir”, complementa.
Jornalista em formação pela PUC-SP, instituição onde desenvolve sua pesquisa sobre as obras do Racionais MC's. Mãe de pet e planta, canceriana e apaixonada por música. Correspondente de Guarulhos, na Grande São Paulo, desde 2022.
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