A iniciativa de Raquel surgiu ao longo dos anos quando a falta de representatividade de negros e negras nos games mais jogados nas periferias foi notado por ela
Por: Patrícia Vilas Boas | Cleberson Santos
Notícia
Publicado em 08.12.2020 | 7:41 | Alterado em 07.12.2020 | 22:34
Para entender a relação de Raquel Motta, 25, com os games é preciso voltar para a infância dela, antes mesmo de ela saber ler e escrever.
“Minha mãe é professora e eu sempre precisei ficar na escola [depois da aula]. Ela colocava joguinhos de alfabetização nos computadores para mim. Fui introduzida assim ao mundo dos games, por conta dela”, relembra Raquel, uma das criadoras da Sue The Real, um “estúdio de jogos focados em narrativas brasileiras”.
O estúdio surgiu por uma inquietação de Raquel ao longo dos anos – a falta de representatividade de negros e negras nos games mais jogados nas periferias.
Moradora da Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, ela cresceu em Guarulhos, no bairro Inocoop II.
“Nerd” da turma, Raquel continuou apaixonada por videogames, mas não imaginava que isso poderia virar uma profissão. Desde criança, tinha interesse em fazer medicina, mas acabou indo para a análise e desenvolvimento de sistemas ao lado do atual companheiro e sócio, Marcos Silva.
No TCC, desenvolveram um jogo para crianças com deficiência nas mãos. Foi a partir daí que surgiu o “start” de que seria possível trabalhar com isso.
“Depois que percebi que estava gostando disso, comecei a entender como funcionava a indústria de games, mas também foi quando comecei a perceber que essa indústria no geral não representa bem as pessoas negras”, afirma.
Raquel se incomodava com a forma com que os negros eram representados em games, como no GTA, franquia de jogos eletrônicos em que os jogadores cumprem missões relacionadas ao crime e violência.
“Se você for ver, maior parte dos consumidores do GTA é a periferia. E parte da população da periferia é negra. Chegou um momento que eu jogava, mas não conseguia ter a visão de antes, de só me divertir e falar que estava tudo bem, comecei a ficar incomodada, e não só eu como o Marcos também”.
Ao mesmo tempo, ela entendia a importância da representatividade. Um dos seus jogos favoritos era o Tomb Raider, protagonizado por uma personagem feminina, a Lara Croft.
Foi a partir desses questionamentos que o casal começou a desenvolver a Sue The Real. O projeto começou em 2017 e produzia jogos sob demanda para empresas para conseguir se manter financeiramente. O coração da empresa estava mesmo na questão da representatividade.
Um dos primeiros trabalhos autorais da Sue The Real foi o jogo Angola Janga, inspirado na graphic novel de mesmo nome que conta a história do Quilombo de Palmares. Além disso, a dupla também desenvolveu o One Beat Min, jogo de Beat Box inspirado no brinquedo “Genius”, da década de 1980.
Os dois jogos foram apresentados em suas versões demo na Perifacon, a Comic Con das Periferias, realizada em 2019 no Capão Redondo. Raquel relembra como se sentiu ao ver outras crianças negras e periféricas testando o jogo:
“Houve uma conexão muito forte e uma coisa que lembro bastante era de uma criança chegando em mim e falar assim ‘nossa tia, é um homem negro’”, relembra. Na hora, ela não entendeu a observação e apenas confirmou. “Aí ela me explicou que nunca tinha jogado com um personagem negro. Pensei ‘é disso que eu estou falando!'”.
Com a pandemia, alguns dos projetos da Sue The Real acabaram sendo adiados. A dupla pretende levar o One Beat Min para a GDC (Games Developers Conference), um dos principais eventos para desenvolvedores de jogos do mundo, nos Estados Unidos.
Também pretendem trabalhar na produção de um terceiro jogo, o Aya e seu Lindo Black Power, que fala sobre o empoderamento de crianças com cabelo crespo.
*Esta reportagem faz parte da série Crias da Quebrada, com a história de dez jovens das periferias de São Paulo
Jornalista em formação. Curiosa, gosta de sol, praia e um bom livro nas horas vagas. Correspondente da Vila Curuçá desde 2019.
Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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