Moradores estão preocupados com processo de urbanização no entorno do Rio Ipitanga, que integra sistema responsável por abastecimento de água em Salvador
Moisés A. Neuma/Agência Mural
Por: Lucas Barbosa
Notícia
Publicado em 18.12.2020 | 9:35 | Alterado em 22.11.2021 | 16:32
A picada de uma jararaca faz parte de uma das muitas recordações das visitas do historiador Angelo Guimarães, 27, à região da Boca da Mata, banhada pelo rio Ipitanga, em Cajazeiras. Mas a serpente, de longe, é para ele uma ameaça preocupante comparada aos impactos humanos à preservação do local.
Nessa região está localizada a barragem de Ipitanga, construída em 1935 e que integra um conjunto de represas responsável por 40% da distribuição da água de Salvador. No entorno do reservatório, novos empreendimentos e despejos de lixo no rio têm chamado a atenção da população que vive ou frequenta a região.
“É um lugar importante para a própria história de Cajazeiras e é uma pena que vem sofrendo pelos despejos indevidos de resíduos vindos de empreendimentos, condomínios e ocupações irregulares em torno do rio”, diz Guimarães.
O historiador é ex-morador do bairro e conta que costuma fazer trilhas na mata em volta do rio. Em um feriado de abril, do qual não tem certeza sobre o ano ocorrido, disse ter sido picado pela cobra. “Tive complicações por 30 dias. Já tinha encontrado outras serpentes no mato e o que recomendo é o dever de respeitar a natureza e sua dinâmica, porque não podemos passar por cima dela”, diz.
Outro frequentador, o servidor público Anderson Cardim, 38, costuma nadar no rio quando visita sua mãe, moradora das proximidades. Ele aproveita também para coletar resíduos nas águas, mas acredita que grande parte da sujeira não é responsabilidade da população local. “Nunca vi um morador sujar conscientemente o meio ambiente, às vezes é até sem querer. Nada que cause impacto, o que causa danos mesmo é o desejo do lixo dos condomínios direto no rio”, observa Cardim.
Com cerca de 644,72 Km2 de extensão, o rio Ipitanga nasce no município de Simões Filho, corre pelas matas da região metropolitana de Salvador e deságua no rio Joanes, já na cidade de Lauro de Freitas. Em seu curso, há três barramentos de água, as Represas Ipitanga I, II e III, que formam o sistema de barragens Joanes-Ipitanga.
Em Boca da Mata, está a barragem do Ipitanga I, que também alimenta as estações de tratamento do Parque Boladeira. Ali, moradores costumam nadar, pescar e utilizar a área como espaço de lazer.
Segundo os índices de divulgados pelo Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) em 2020, a barragem Ipitanga 1 tem o único ponto considerado com níveis regulares de qualidade da água dentro da bacia do rio Ipitanga.
Outros pontos que não estão dentro do reservatório, mas fazem parte do seu curso, tiveram os níveis de qualidade de água considerados ruins e, portanto, caracterizados como impróprios para consumo e banho.
A assistente social Jamile Araújo, 33, moradora do bairro, demonstra uma relação afetiva com o rio. “Há décadas atrás não tínhamos outras opções de lazer. Íamos em família e era natural as crianças conhecerem o caminho da barragem. A gente pegava boia, garrafa pet e aquela câmara de pneu para ficar boiando nas águas. Tinha uma boa conexão com a natureza”, relembra.
Quando o Hospital Municipal de Salvador (HMS), localizado no bairro da Boca Mata, começou a ser construído, em 2016, Jamile fez parte do grupo de moradores que iniciou uma mobilização contrária ao empreendimento preocupada com os possíveis danos que a obra poderia causar ao rio e ao meio ambiente da região.
“Não tínhamos noção da riqueza natural que era aquilo, porque o nome barragem remetia a uma poça que o homem coloca água e deixa lá parada. Mas depois que começaram a obra do hospital municipal, percebemos o quão rico era aquele lugar e o risco da contaminação”, diz Jamile.
A moradora afirma que na época acompanhava as reuniões do conselho gestor do rio. O resultado da mobilização foi uma denúncia ao Ministério Público considerando que o projeto do hospital não apresentou um EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança), relatório que levanta os impactos ambientais e sociais de grandes construções. Ressaltando ainda que o rio faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) Joanes-Ipitanga.
A denúncia gerou efeitos. Apesar de ter sido inaugurado em 2018, nas proximidades, o hospital precisou rever o projeto e garantir o direcionamento dos seus resíduos para uma unidade de tratamento de esgoto construída pela Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento).
“Claro que queríamos um hospital. Só não queríamos um na beira do rio. O hospital ia atrair outros empreendimentos como está atraindo agora e isso é um problema para área verde. O rio tem vida. E o certo mesmo é deixarmos de chamar aqui de barragem; é um rio, tem muitas nascentes”, diz Jamile.
Mas a unidade de saúde não é a única preocupação ambiental dos moradores. Condomínios têm fechado passagens e delimitado áreas na região. “A verdade é que quando tem o aumento da urbanidade, a pessoa acaba sem querer destruindo o habitat natural de algum bicho”, avalia Cardim.
Para o biólogo Bruno Marchena, o rio enfrenta outros efeitos da urbanização da área. “Ali, nas margens do Ipitanga, existem empreendimentos e ruas que foram construídas em torno da barragem. As construções destroem a mata ciliar, provocando a erosão do rio e fazendo com que ele transborde em outras regiões”, afirma.
O biólogo avalia que há um problema na fiscalização da qualidade dos rios e aponta que a Embasa, responsável pelo abastecimento de água em Salvador, concentra os cuidados apenas com alguns trechos ao longo do rio, como o da barragem. “São ignorados os pontos de poluição ao longo do caminho. A solução para preservação de todos os rios de Salvador e região metropolitana é a descentralização do tratamento da água. Assunto totalmente relevante e de interesse público, porque o Estado não iria mais negligenciar outros rios em pró de apenas uma região”, afirma.
Sobre a manutenção da área, a reportagem entrou em contato com a assessoria da Embasa, mas a empresa não respondeu até o fechamento desta edição.
Correspondente de Cajazeiras em Salvador, BA, desde 2020. Nascido em Jequié mas criado em Salvador, formado em ciências sociais e mestrando em antropologia, educador social, treinel de capoeira Angola e pai de Malik.
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