Pessoas negras e periféricas vão continuar incomodando e viajando para o exterior, apesar das dificuldades impostas a quem vem das quebradas
Por: Tamiris Gomes
Opinião
Publicado em 06.01.2023 | 19:22 | Alterado em 06.01.2023 | 19:51
“A pobre catadora que viaja pela Europa”; “Até catador de latinhas foi para o exterior”; “Acho que o cidadão de bem jogou joias no lixo. Bora catar lixo, pessoal”. Estas foram algumas entre as muitas mensagens agressivas e preconceituosas que Aline Sousa, 33, responsável por colocar a faixa presidencial em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), recebeu no Instagram ao longo desta semana. Os comentários inundaram uma imagem em que ela estava em Roma, na Itália.
Uma mulher negra, de origem pobre e catadora de recicláveis teve de justificar a ida ao país europeu, como se fosse algo completamente atípico ao perfil dela, que vive no Distrito Federal. O incômodo de parte da sociedade, infelizmente, não nos espanta. Impossível esquecer que a gente vive num país em que a cultura racista ainda tem grande força.
As desigualdades sociais e de renda no Brasil perpetuam ainda mais esse preconceito, o que dificulta visualizar a ascensão dos mais pobres e assegura a permanência dos mais ricos no topo. O discurso de que “só rico viaja” continua sendo regra e viajar para fora é um enorme privilégio.
Segundo dados de 2019 do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua Turismo 2019, divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas duas em cada dez famílias brasileiras viajam e, entre as que não viajam, 48,9% alegam que não têm dinheiro para isso.
Na minha família, faço parte da geração dos primeiros a entrar na universidade e também dos primeiros a viajar e estudar no exterior. Meu pai, fresador, nunca entrou num avião até hoje. Parece que temos essa missão de questionar e romper esses padrões elitistas.
Em 2016, um breve relato sobre minha primeira viagem longa, um intercâmbio ao Canadá, foi publicado no site Nós, mulheres da periferia. Ali comentei sobre as escolhas de economizar, um ano juntando dinheiro para um mês de viagem. O que me servia de combustível era estar prestes a ter algo “inacessível” a uma pessoa com poucos recursos.
“É trabalhoso? É. É difícil? É. Mas quando eu estiver lá no avião, no mesmo lugar que bacana tá tão acostumado a frequentar, essa minha felicidade vai multiplicar”
Corta para 2023, é a mesma felicidade que sinto quando viajo ou vejo meus amigos(as), periféricos(as), pretos(as), pardos(as), bolsistas, cotistas, cruzarem o oceano, turistando pelo mundo. Hoje, coleciono viagens em quase 15 países, inclusive na Itália.
No entanto, nos últimos anos, isso tem sido dificultado com a alta do dólar e tudo o que vivemos economicamente nesses tempos. Para alguns e até para os ex-ocupantes do governo brasileiro essa alta na moeda foi importante para evitar que “empregadas domésticas viajassem para o exterior, uma festa danada”, na definição do ex-ministro da economia. Não é festa nem deveria ser privilégio de poucos.
Nos próximos anos, a gente quer mais Alines com a possibilidade de escolher para onde ir, seja por lazer ou trabalho, e que não tenham que explicar um passeio na Fontana di Trevi.
Editora-assistente da Agência Mural. Fã de cinema, poesia e barulho de mar. Cofundadora e correspondente de Poá desde 2011
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