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Sobre objetos, trocas, aromas e melodias

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Por Fabiana Lima | 29.09.2017

Publicado em 29.09.2017 | 15:48 | Alterado em 22.11.2021 | 17:03

Tempo de leitura: 3 min(s)

Eu olhava minha casa e ficava reparando o que não vinha de segunda mão. Praticamente tudo tinha sido de alguém antes de ser nosso.

Eram tantos botões e o tempo era pouco para aprender, mal eu me acostumava com um televisor e já vinha outro em seu lugar. Naquela época a TV era analógica. Havia uma antena enorme do lado de fora aterrada no chão, e nós saíamos para sintonizar os canais, mesmo debaixo de chuva. A antena menor da televisão não podia deixar de ter um bombril pendurado.

“Olha que imagem linda”, dizia minha mãe. Quando a imagem da TV não era esverdeada. Geralmente acontecia.

Chegamos ao Jardim Santo André ou Cruzado II em 89. Meu pai construiu um barraco seguro que nos abrigou da chuva, do sol por um bom tempo. Nossa casa.

Milionário e José Rico, João Mineiro e Marciano, Trio Parada Dura, Teixeirinha, Sérgio Reis, Tonico e Tinoco eram as modas que nos acordavam às 6h30 da manhã, hora que meu pai se levantava para ir trabalhar e sintonizava o rádio, às vezes umas modas tristes que se misturavam ao aroma do café passado no coador de pano, que mais cedo comeríamos junto com o pão que ele deixava antes de sair, um ritual (para mim sagrado) que continua até hoje.

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Sr. Luiz Alves de Lima (Créditos: Fabiana Lima)

Minha primeira bicicleta foi uma Caloi rosa. Aprendi a andar dando voltas no quintal do barraco, depois fui crescendo e os tamanhos das bikes também, o quintal foi ficando pequeno, dando espaço à casa de alvenaria. E eu ganhava as ruas. Meu pai levava minha mãe na garupa para o trabalho, eu mesma já andei diversas vezes com ele, mas nunca aprendi a me equilibrar e levava meus amigos na parte da frente. A que eu tenho hoje foi trocada há anos por uma mobilete com um tal de Banha lá do morro.

“Pai, quero um relógio”. Assim também foi com o teclado — que nunca aprendi a tocar. Não, calma, não posso ser tão injusta comigo assim, aprendi de ouvido um pedaço de Asa Branca. Orgulho!

Máquina de escrever, já sabe, né, quem não tinha o curso de datilografia não ia arranjar emprego! Minhas irmãs fizeram, eu pegava a pasta emprestada delas para aprender. Até que eu era boa e dedicada, mas minha rebeldia não me deixou seguir carreira.

Máquina de escrever, calculadoras enormes e antigas, relógios — de parede, com pêndulo, despertadores — armas, quadros, enfeites, engenhocas, liquidificador, cafeteira, violão, moedor de carne, balança, discos, sanfonas, vitrola, discos antigos, mobilete, vídeo cassete, rádios, radinho, radiolas… Tudo chegava pelas mãos do meu pai.

Embora não soubesse ler, meu pai conhecia Semp, Philco, Philips, Motoradio, Zilomag, Canarinho-Voz de Ouro, Nord- Som. Adorava vê-lo consertando. Por dentro, parecia que todos eram iguais. Quando não compensava a manutenção ele me deixava brincar. Todas aquelas peças coloridas e acobreadas me remetiam a uma cidade em miniatura.

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Sr. Luiz fazendo seus consertos no quintal (Créditos: Fabiana Lima)

-“Seu Luiz! Seu Luiz tá aí?” Era o dia inteiro alguém o chamando. “Ana, faz um café”. Minha mãe nunca fazia, mas ele nunca desistiu até hoje. Eu só sei que depois de algum tempo, o café saía. Os homens sentados em algum canto da varanda, vários relógios, rádios, bicicletas.

Ele sempre manteve um lugar onde guardar os objetos, minha mãe achava uma bagunça. De vez em quando ele se desfazia de muita coisa, mas nunca aprendeu. Eu não era tão diferente dela. Dentro de gaveta, em cima do armário, podia se encontrar fios, porcas, pregos, benjamim, pilhas.

“Você me vorta quanto?”. “Que, rapa, esse aqui é da quartzo”, “Não, esse daqui eu não posso, é da Fabiana”. Eu sempre fui uma ótima desculpa quando ele não queria trocar algo. Táticas.

Havia momentos em que eu olhava minha casa e ficava reparando o que não vinha de segunda mão. Praticamente tudo tinha sido de alguém antes de ser nosso.

Anos atrás meu pai fez questão de fazer um carnê nas Casas Bahias de uma bicicleta vermelha, dessas sem marcha. Ele não gosta. Até aí tudo bem, o que eu achei curioso foi o fato de que, pouco tempo depois, pouco tempo mesmo, ele fez um rolo por outra. Detalhe, a outra era igualzinha, da mesma cor e tudo, a única diferença é que era mais velha, acabada.

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Sr. Luiz em sua bicicleta vermelha (Créditos: Fabiana Lima)

Eu não aguentei, tive que perguntar. “Oxi, por que o senhor trocou sua bike novinha por outra igual e mais velha, é o prazer de trocar?”. Mais tarde o seu Luiz, outro rolista, apareceu com a bike nova do meu pai que agora era dele. Fiz a mesma pergunta. “É que a gente gosta, Fabiana”. Apenas caíram na gargalhada. Nunca entendi, mas eu que de rolo mal sei dos meus, supus que era vantagem paras os dois.

Fabiana Lima é correspondente de Santo André.

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