Por: Rômulo Cabrera
Notícia
Publicado em 27.05.2019 | 17:35 | Alterado em 27.05.2019 | 17:38
Artista enfatiza importância da origem nordestina: ‘Não nego minhas raízes, nem o sotaque que tenho’
Tempo de leitura: 5 min(s)Todos os dias, o poeta Francis Gomes, 46, senta-se para escrever em seu escritório, um espaço de 3 por 5 metros, rodeado por mais de 800 livros. “Escrevo ao menos um texto por dia. Do contrário, não durmo. A ideia não me permite dormir; [ela] fica martelando, assim, e eu tenho que escrever”, revela.
Gomes é um cearense radicado em Suzano, na Grande São Paulo, lá pelos lados do Jardim Revista, bairro na periferia da cidade. Ele já publicou três livros, 25 folhetos de cordéis, e lançará a quarta publicação, “Prosas quentes e versos lúbricos”, em agosto deste ano.
“Os autores independentes, como eu e muitos dos meus amigos, não publicam para viver de direitos autorais, mas por não conseguirmos viver sem literatura. Metade de mim morreria se eu simplesmente parasse de escrever.”
Francis é técnico em manutenção em uma multinacional da cidade. “Oficialmente”, porém, ele se apresenta como poeta e cordelista. “Pra quem não sabe, eu falo, pra quem já sabe eu repito, eu nasci em Assaré e vivi em Farias Brito; não sou nenhum grande artista, sou poeta e cordelista, natural do Ceará”, declama.
O poeta mantém uma rotina de apresentações em saraus, escolas, e demais eventos culturais nas periferias e nas regiões centrais de Suzano.
Viveu em Farias Brito, mas foi na roça de Assaré, onde “no mês de maio nasce um verso em cada gaio, e em cada flô uma rima”, que Francis, aos oito anos, aprendeu a ler. Lia os cordéis em troca de tijolinhos, “o que aqui vocês chamam de cocada”, explica.
Para não gaguejar durante as leituras, memorizava as estrofes antes de se apresentar – um ritual que repete até hoje. “Eu fingia que estava folheando os cordéis. Na verdade, já estava decorado. Era tudo pra ganhar um doce, pra ganhar o tijolo, a cocada.”
Francis relembra os banhos nos rios, nos açudes, das longas caminhadas descalço nas estradas de Assaré. “O Nordeste é meu paraíso”, afirma, para depois emendar em ritmo compassado: “Esta pequena porção que chega a caber na mão, de tão pequeno que é, não é nenhuma Pompeia; mas é minha Galileia, como a de Jesus de Nazaré.”
Aos 14 anos, passou a escrever com mais frequência. O garoto que antes lia por tijolinhos, agora escrevia para se vingar. “Eu estava revoltado, sabe, revoltado com a vida, porque [na época, em Farias Brito] eu não conseguia nada”, relembra.
Francis sonhava em ser jogador de futebol. “Mas eu não tinha condições de comprar um Kichute [calçado fabricado no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980]”. Depois, sonhou em ser cantor, “mas como ia ser cantor, irmão, se nem voz eu tinha?”. “Foi quando decidi cantar em versos, cantar em prosa, cantar a vida. Acho que é por isso que sou poeta”, conta.
Seabranira, a professora de Francis no ginásio, foi uma figura importante nesse período. “Ela gostava dos meus textos – poesias e crônicas, em sua maioria”. Francis conta que a professora datilografou um bocado desses escritos, “alguns deles eu tenho aqui comigo, guardados em algum lugar”.
“Quando a encontro em Farias Brito, ela me diz: ‘Lembra quando eu falava que você um dia seria escritor?’. Faço questão de encontrá-la todas as vezes que viajo para o Ceará; ela e minha professora do primário, Maria Salles, que ainda é viva.”
“Uma me ensinou a ler, outra acreditou em mim quando eu nem sonhava em ser escritor. A verdade é que nunca tive essa vontade de ser poeta. Eu escrevia para desabafar, pra me vingar daquilo que não dava certo”, lembra.
E O LIVRO? QUANDO SAI?
Francis veio para Suzano em 1992, aos 19 anos. “Vim [morar] exatamente neste lugar que nós estamos”, conta. A casinha simples, de telhas, era do tio que anos depois lhe vendeu “em suaves prestações”, brinca.
A casa ganhou alguns cômodos a mais, uma garagem ampla, o escritório onde estávamos, além de uma sacada que dá uma bela visão da cidade ao fundo. Francis já não mora sozinho e agora divide o imóvel com a esposa, Andréia, e a filha de oito anos, Yasmin.
Depois de alguns anos em solo suzanense, conheceu o hoje escritor Ademiro Alves de Souza, 35, o Sacolinha, com quem nutre forte amizade. Sacolinha é autor de sete livros entre eles, “Graduado em Marginalidade”, que foi indicado ao Prêmio Jabuti, em 2005, na categoria de melhor romance.
“Nós fizemos algumas oficinas literárias juntos. O Sacola já tinha esse interesse [em se tornar um escritor], viver disso. Eu, por outro lado, nunca pensei em escrever, apesar de ter algumas coisas guardadas comigo. Eu era poeta e não sabia”, conta.
O primeiro livro de poesias de Francis, “Ecos do Silêncio”, publicado em 2011, foi prefaciado por ninguém menos que o amigo Sacolinha:
“Fazia tempo que eu pedia ao Francis para publicar seu livro. Chegou um momento em que até resolvi parar de cobrá-lo. Mas não consegui. […] A cada cordel novo que ele interpretava em público […] eu ficava me perguntando o porquê da demora do livro. E ele sempre sossegado, dizendo que ia publicar, que precisava ver, que ia dar um jeito”, escreveu Sacolinha.
“Eu devo muito ao Sacola ao fato de eu ser poeta, ao fato de eu ser escritor”, admite Francis.
NEGAR AS RAÍZES É SE PERDER
“O poeta é um arquiteto da palavra; e as palavras estão por aí, como o ar que eu e você respiramos.” Para Francis, a poesia, sobretudo o cordel, “precisa ter musicalidade, precisa de lirismo, precisa de cadência.” Mais que isso, “precisa comunicar”, afinal de contas, “nem todo matuto é analfabeto, e nem todo analfabeto é matuto”, completa.
Francis conta que escreve de tudo, mas quando trabalha com cordéis, “é bom que fique claro isso”, busca enaltecer o povo e a cultura nordestina “e roubar o sorriso das pessoas”.
De acordo com o poeta, se envergonhar das próprias raízes é também se perder. “Porque aquele que não sabe de onde saiu, não sabe onde quer chegar; e aquele que não sabe onde quer chegar, não sabe que caminho tomar”, filosofa para em seguida interpretar mais um poema:
“Não escondo os indecoros que existam, mas me esforço pra cantar as belezas desta terra desprovida de um rei, onde a lua toda noite faz clarão, e o Sol impetuoso fere forte, como carrasco dessa terra e desse chão. […] É por isso que eu canto esse povo, suas dores, alegrias e tristezas.”
Quando perguntado “o que é ser poeta”, preferiu o abstrato ao objetivo: “Ser poeta é… chorar sorrindo, é sorrir chorando”. Depois de um tempo, concluiu: “O poeta é um causador de emoções, ‘furtador’ de lágrimas, ‘roubador’ de sorrisos, um contador de histórias, matuto, um caipira, um poeta. Tudo isso é ser poeta”.
Formado em Jornalismo. Operário do texto, apresentei o podcast Próxima Parada da Agência Mural. Dou uma de videomaker às vezes. Futuro ex de alguém. Sommelier de tubaína. Correspondente de Suzano desde 2018.
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