Era 10 de novembro de 1973 quando os irmãos Domingos, moradores da Vila Rica, na zona leste de São Paulo, fundaram o Ajax Futebol Clube. Mauro Domingos da Silva, 69, mais conhecido como Garrafão, tinha de 18 para 19 anos quando ele os vizinhos começaram a jogar valendo um refrigerante em disputas contra outras ruas do bairro.
“A gente sempre era o campeão, bebia muita Tubaína”, conta o membro de uma família com 11 irmão (6 homens e 5 mulheres), 12 netos e mais de 40 sobrinhos.
Desse começo do time da antiga rua 4 nasceu a equipe que é uma das mais tradicionais do futebol amador na capital. O Lobão da Várzea tem mais de cinco décadas de atuação, e conta com grandes nomes no elenco como Douglas Ramos, pai do jogador Endrick, que atua pelo Palmeiras e pela Seleção Brasileira, mas está prestes a ir para o Real Madrid. Douglas joga na categoria acima de 50 anos, o Cinquentão.
Nos últimos meses, Endrick arrumou um tempo para vestir o manto amarelo e preto, e fazer uma breve homenagem ao Ajax.
Ex-jogadores profissionais também fazem parte do elenco, caso de Gilmar Fubá, ex-Corinthians e natural da Vila Rica, o que o aproximou do time de várzea, e do atacante Boquita, também ex-Corinthians e que jogou junto com Ronaldo Fenômeno.
A referência para o nome do Ajax, aliás, veio do histórico time holandês, o Amsterdamsche Football Club Ajax. As cores, no entanto, não combinavam com a proposta dos jovens da Vila Rica, daí a ideia de utilizar o amarelo e o preto.
Já o emblema é inspirado no brasão do Santos, clube que concentrava boa parte dos torcedores da região. “Hoje é diversificado, tem torcida de todos os times, graças a Deus”, diz Jaime Forastieri Júnior, 57, o Jaja, atual presidente do clube.
Em uma partida recente contra o E. C. Jardim Lourdes, por exemplo, não só as camisetas amarelo e preta se destacavam nas arquibancadas, mas também o alvinegro e o verde de Palmeiras e Corinthians, unidos pela ligação ao Ajax e a zona leste.
‘Eu sou da Zona Leste, eu sou da Vila Rica! Eu sou Lobão, sou tradição, sou campeão!
Torcida do Ajax
Jaja conta que o Ajax disputa de duas a três copas por ano. Em 2024, o time participa da Super Copa da Zona Leste, no primeiro semestre, e da Copa Martins Neto, na segunda metade do ano. “Queríamos participar de todas [as competições do ano], mas não tem data. Se você entrar em mais do que três copas no ano, já começa a não ter data para disputar as competições”, relatou o presidente do Ajax.
Entre as conquistas da equipe, uma das principais foi a Copa Kaiser, torneio considerado um dos maiores da história do futebol de várzea. A equipe conquistou a taça em 2012, quando o confronto entre o Lobão da Vila Rica e a Turma do Baffô, do Jardim Clímax, da zona sul, levou mais de 23 mil torcedores ao Pacaembu. O Ajax venceu por 2 a 1.
Foi o segundo título do Ajax, que conquistou a Copa Kaiser também em 1992, além de outras taças vencidas na região. “É por isso que a torcida acompanha direto”, diz Jaja sobre o fato de o time ter até torcida organizada.
“Fanáticos” pelo Lobão da Vila Rica
Fundada em 1998, a Torcida Fanáticos tem ônibus para levar os torcedores aos jogos do Ajax. Adriano Abreu, 39, é morador do Parque Boa Esperança (na zona leste) e tem apenas três anos de torcida pelo Ajax. Apesar disso, ele é um completo “fanático pelo time”: veste amarelo e preto da cabeça aos pés, e chegou a tatuar o emblema do time em uma das mãos.
‘Não sei o que seria se eu não tivesse conhecido os representantes do Ajax. Mudou totalmente a minha vida, com certeza’
Adriano, membro da Torcida Fanáticos
Adriano lembra ainda que, além dos títulos, o Ajax se destaca por ajudar a comunidade no entorno, seja com a doação de cestas básicas ou com a promoção de eventos sociais.
Além de torcer, Adriano sempre está no campo e também na sede. Ajuda a varrer o gramado, limpar os vestiários e os banheiros. “Sou muito dedicado, amo o que faço. O Ajax pra mim é minha família, é minha vida. É um clube que Deus preparou para eu honrar”, conta.
O principal propulsor dessa torcida com certeza é a bateria, tão importante para incentivar o time.
‘É sangue no olho, é tapa na orelha, é o jogo da vida e o Ajax não é brincadeira‘
Grito da torcida organizada
Renato Guilherme Quichini dos Santos, 34, é morador do Jardim Novo Carrão e líder da bateria dos Fanáticos. Mais conhecido como Nato, ele conta que entrou para a torcida do Lobão em 2013, após uma partida contra o Jardim Veronia Esporte Clube, time em que o irmão dele jogava.
Nato diz que ao ver a Fanáticos não teve escolha. “Em meu pensamento, conversei comigo mesmo: ‘vou fazer parte dessa torcida’. Meu irmão não entendeu nada. Perguntou se eu tinha ido ver ele jogar ou ver a torcida do Ajax. Eu respondi: ‘vim ver você, mas aquela torcida mexeu comigo’. A Fanáticos é diferente”, lembra o ritmista.
“É um sentimento inexplicável você estar no meio da torcida do Lobão e ver no olhar de cada um como o amor pelo time é incondicional. Eu fico até arrepiado”, diz o MC e cantor Elmo Silva Júnior, 34, artista que é morador da Vila Antonieta, bairro vizinho da Vila Rica.
A várzea é sinônimo de inclusão
A fanáticos é diversa, e conta com homens, mulheres, crianças e idosos entoando os cantos que incentivam o Lobão da Vila Rica.
Mario Zan, 74, por exemplo, é um dos torcedores mais antigos do clube, o que ele encara com modéstia. O Ajax entrou na vida dele logo que foi fundado, ainda em 1973. “Eu não diria o mais antigo, mas sou um dos sobreviventes”, diz o torcedor.
Para ele, a representatividade de ser morador da Vila Rica é o que mais o emociona. “O meu sentimento pelo Ajax é de gratidão por ter me dado algumas tristezas, mas também muitas e muitas alegrias. Além disso, por ter levado o nome da nossa vila para o mundo”, conta o torcedor.
Além da terceira idade, o Lobão também é bastante popular entre mulheres e crianças. João Beni Filho, 62, mora na Vila Antonieta e hoje leva o filho, Enzo Gabriel, 9, para assistir às partidas.
Ele conta que jogou no Ajax até os 53 anos, e depois precisou parar por conta de uma lesão no tornozelo. “Agora eu só vou torcer com o meu filho, e tenho duas paixões: o Ajax e o Corinthians”, diz.
Outro pequeno que está sempre presente nas partidas é Daniel Rodrigo, 9, filho de Daniela Rocha dos Santos, 42. A moradora de São Miguel Paulista, que prefere ser chamada de Dani, é uma das muitas mulheres que vestem a camisa do Ajax e torcem com orgulho e dedicação.
Dani conhece o Ajax desde pequena e, mesmo que tenha saído da Vila Rica há 20 anos, seu amor pelo time nunca mudou. Ela conta que, nesse período, viu o cenário do machismo no futebol de várzea mudar quase que completamente. Hoje, a torcedora diz não considerar o ambiente machista.
“No Ajax, principalmente, nunca me senti diminuída ou com alguém tendo atitudes machistas. Pelo contrário, somos muito bem recebidas na torcida. Só não faço parte da bateria porque moro longe, senão estaria tocando também”, revelou a torcedora.
Daniele Ferreira de Campos, 36, mora na Vila Rica e sempre frequenta os jogos do Lobão, onde também costuma ver muitas mulheres torcendo pelo time. “Vemos que futebol não é só para homens, que podemos colaborar muito na torcida e até com o time de alguma forma”, conta a torcedora.
Júlia Domingos Rocha, 18, também começou a acompanhar o Ajax desde pequena, assim como Dani. Neta de um dos fundadores do clube, a moradora da Vila Rica vê na presença das mulheres na várzea um símbolo de resistência e superação de preconceitos.
“Podemos ir assistir aos jogos, cantar, ficar na bateria, saber o que está acontecendo no gramado”, destaca a torcedora e herdeira do legado do Lobão.
Daniela Rocha dos Santos empunhando sinalizador durante partida do Ajax @Milena Vogado/ Agência Mural
Michele Salgado, 29, é moradora de Guarulhos e diz ter começado a acompanhar o Ajax há 4 anos, como resultado da paixão do namorado pelo clube.
Entre os Fanáticos, Michele encontrou um ambiente com o qual se identificou, principalmente pela forte presença de mulheres em posições importantes – tanto na torcida como no time, inclusive na diretoria, como contou. “Acho que é diferente das outras torcidas. No Ajax, as mulheres fazem a diferença”, diz. Apesar disso, a equipe não tem hoje um time feminino.
O futebol de várzea paulista
De acordo com a FPFV (Federação Paulista de Futebol de Várzea), a primeira partida de futebol varzeano em SP ocorreu no ano de 1902, na contramão da criação da Liga Paulistana, responsável por organizar campeonatos “oficiais” de futebol.
Segundo a Federação, a Liga só aceitava a “elite da cidade”. E, somente em 1917, o futebol varzeano começou a se fundir com o da elite.
Conforme a FPFV, fundada em 2008, há hoje 4 mil equipes cadastradas na Federação na Grande São Paulo, além de 440 campos relacionados para as partidas.