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Agência de Jornalismo das periferias

Isabela Alves/Agência Mural

Por: Isabela Alves

Notícia

Publicado em 30.09.2025 | 21:32 | Alterado em 01.10.2025 | 17:36

Tempo de leitura: 5 min(s)

A profissão de trancista passou a integrar a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Desde julho, profissionais que já atuavam no ofício passaram a ter acesso a direitos trabalhistas.

A formalização permite, por exemplo, que elas se registrem como MEI (Microempreendedoras Individuais), contribuam para a Previdência Social e tenham direito à aposentadoria, licença-maternidade, auxílio-doença, entre outros benefícios.

Esse trabalho é realizado especialmente por mulheres negras das periferias, que historicamente exerceram essa atividade sem respaldo ou reconhecimento oficial.

As profissionais terão direito ao MEI (Microempreendedoras Individuais) e outros benefícios @Isabela Alves/Agência Mural

As tranças e a cultura hip-hop

Para Doroteia de Souza, conhecida popularmente como Dorothy Braids, 49, o reconhecimento da profissão deve vir como forma de reparação, já que essas profissionais ficaram desassistidas por muitos anos.

A trancista também observa que essa é uma profissão exercida por mulheres negras que são mães solo, justamente por exercerem a função dentro de casa.

“O meu sonho é criar a minha própria convenção para trancistas, com workshops e palestras. Que a gente possa transmitir a nossa experiência para essa nova geração que está vindo com força. Isso é legado.”

Além de atuar como trancista, Dorothy é formada em música pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) @Isabela Alves/Agência Mural

Dorothy começou a trançar aos 6 anos quando fazia os cabelos das irmãs. Aos 12, já ia até o centro da cidade trabalhar na Galeria do Rock para ajudar a complementar a renda de casa.

‘Eu subia em um caixote para alcançar a cabeça dos clientes. O que aprendi sozinha, como autodidata, fui aperfeiçoando ao longo dos anos com muitas mestras’

Dorothy, trancista

Na década de 1980, época da efervescência e do nascimento do movimento hip-hop no Largo São Bento, no centro de São Paulo, Dorothy também deu início à trajetória artística, integrando o primeiro grupo feminino de rap da história do país: o Rap Girl’s, criado por Sharylaine e sua prima City Lee, em 1986.

Após a perda da mãe, Ana Maria, Dorothy se mudou para o bairro do BNH, no Grajaú, no extremo-sul da capital, aos 20 anos, onde passou a trançar cabelos em casa. Enquanto esperavam a vez, os clientes faziam fila e ouviam a coleção dela de discos de hip-hop.

“Comecei cobrando um preço de quebrada, que na época era R$ 20. No boca a boca, a palavra se espalhou e fui conquistando minha clientela”, conta. Trançou os cabelos de artistas que agora são reconhecidos nacionalmente, incluindo Criolo e Rael.

Mas a marca registrada mais conhecida dela foram as tranças feitas no cabelo do rapper Sabotage. Finas e bem definidas, elas ficavam rente ao couro cabeludo em linhas paralelas.

“Brinco que a minha trança mais famosa foi feita com o produto mais barato”, ri. “Não tínhamos dinheiro, mas buscamos um estilo característico. Fazer a diferença. Nós chamamos o penteado de antenas por ele estar conectado com o sagrado”.

No dia 11 de agosto de 2025, onde é celebrado o Dia Estadual do Hip Hop, Dorothy foi uma das homenageadas com o Prêmio Hip-Hop o Ano Todo na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), em moção assinada por Mônica Seixas do Movimento de Pretas (PSOL-SP).

Alguns estilos de tranças famosos na quebrada

Box Braids: Tranças soltas, feitas da raiz às pontas, entrelaçando cabelo natural com fios sintéticos (como jumbo ou kanekalon). O nome “box” faz referência às mechas divididas em quadrados ou retângulos.

Knotless Braids: Uma variante da Box Braids, porém não possui o nó inicial na raiz. O trançado diretamente acontece com o cabelo natural da pessoa e depois vai se adicionando a fibra sintética (jumbo).

Tranças Nagô (ou Cornrows): Tranças desde a raiz do cabelo, bem junto ao couro cabeludo, em linhas retas ou desenhos artísticos.

Fulani Braids:  Uma mistura de tranças nagô na frente com box braids soltas atrás.

Twists: Tranças feitas com duas mechas enroladas uma na outra.

Jumbo Braids: Tranças mais grossas, feitas com bastante cabelo sintético.

Profissão de mãe para filhas

Para Josefa Ferreira Pascoal, 67, o reconhecimento da profissão chegou tarde. Ela diz não acreditar que a nova medida possa fazer diferença na vida dela, já que está aposentada e mantém uma loja de produtos naturais para complementar a renda.

A profissional começou a trabalhar como trancista em 1990, uma época em que esse tipo de cabelo ainda era algo raro. “Quando alguém via uma pessoa com o cabelo trançado, era algo de outro mundo”, relembra.

Josefa e a filha Raquel, no salão que abriu nos anos 2000

Josefa e a filha Raquel, no salão que abriram há mais de vinte anos @Isabela Alves/Agência Mural

Ela começou a se especializar em cabelos afros aos 30 anos, quando já tinha o próprio salão e fazia cursos para se profissionalizar na área. O curso era caro, mas Josefa decidiu fazer esse investimento, pois sabia que teria retorno no futuro.

Mãe solo de cinco mulheres, que cresceram no salão e foram aprendendo a trançar desde pequenas. Hoje, as filhas Renata, 45, Rosária, 43, Raquel, 42, Janaína, 40, e Pamela, 36, além de cabeleireiras e trancistas, também são professoras. A caçula decidiu estudar fora e, hoje, mora nos Estados Unidos.

A família atua em um salão localizado no bairro do Jardim Mirna, também situado no Grajaú, zona sul de São Paulo.

Josefa também teme que elas não consigam se beneficiar do reconhecimento da profissão e se aposentar com base na lei, já que começaram a trabalhar no início da adolescência e perderam tempo de contribuição para a previdência. Quando a empreendedora abriu o salão nos anos 2000, enfrentou muito preconceito para continuar na área.

Raquel é a filha do meio de Josefa, e atua no salão junto com as três irmãs @Isabela Alves/Agência Mural

De um lado, ela conta que havia racismo contra as pessoas que usavam tranças. Ao mesmo tempo, muitas “pessoas negras ainda não se aceitavam, diziam que tinham vontade, mas não queriam”, recorda.

Com o passar dos anos, as tranças se tornaram um símbolo de estética e empoderamento negro. Para ela, houve avanços. Hoje, é comum encontrar pessoas com diferentes estilos de cabelo pelas ruas.

Raquel trabalha no salão com a mãe desde os 13 anos. Com todo o trabalho realizado, conseguiu pagar a faculdade de Letras e atua na área da educação há 18 anos.

Ela lembra que trançar os cabelos era um momento de intimidade entre mãe e filhas. Na correria do dia a dia, aquele era um tempo dedicado às conversas, para saber como estava a vida de cada uma. A paixão pela profissão está diretamente ligada a essas memórias.

‘Uma mulher preta criar cinco meninas sozinha não é fácil no país em que a gente vive. Ela nos criou para trabalhar e sermos independentes’

Raquel, filha da Josefa

Desde os sete anos, Raquel acompanhava a mãe para observar e, diante da necessidade, começou a aprender a arte da trança. Ela reflete que a profissão é algo ancestral, já que o conhecimento passado da mãe para as filhas agora está sendo transmitido também aos netos.

Apesar de, no início, não ter clareza sobre a importância política do cabelo, a clientela foi mudando. Assim, elas perceberam, de fato, que as tranças representam resistência de identidade negra, de classe e de luta.

Para a profissional as tranças trazem a ancestralidade e o saber passado de mãe para filha @Isabela Alves/Agência Mural

Ao trançar os cabelos, também se trabalha a autoestima. Raquel relata que as pessoas chegam ao salão se sentindo “quebradas” por conta de problemas pessoais, mas, ao entrarem em um ambiente acolhedor, começam a se reencontrar e a se reconhecer.

Apesar das dificuldades da vida, a família segue resiliente e inspiram pessoas que vivem nas periferias. Josefa, que estudou até a 4ª série, sempre teve pulso firme para que as filhas estudassem e realizassem seus sonhos.

“Meu maior sonho era ver minhas filhas formadas. Hoje, elas trabalham em dois empregos, e isso é gratificante de ver. Têm uma vida boa”, se emociona. “A gente venceu a batalha.”

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Isabela Alves

Jornalista e cineasta da quebrada. Pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura e em Gestão de Projetos Culturais pelo CELACC/USP. Fundadora da Parasita Filmes, produtora independente dedicada a contar histórias do extremo sul de São Paulo.

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