Criado em Taboão da Serra, coletivo lança composições e fala sobre a cultura na quebrada: 'O nosso disco é resistência contra nossas mortes’
Léu Britto/Agência Mural
Por: Lucas Veloso
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Publicado em 12.12.2019 | 16:09 | Alterado em 12.12.2019 | 16:20
Criado em Taboão da Serra, trio lança composições e fala sobre a cultura na quebrada: 'O nosso disco é resistência contra nossas mortes’
Tempo de leitura: 4 min(s)Uma inscrição em uma ponte de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, diz “O afeto é o nosso fato”. Para o trio Clarianas, a frase simboliza um pouco da cultura na periferia. A expressão foi grafitada perto do Espaço Clariô de Teatro, local que marca a trajetória do grupo musical.
Formado por Naruna Costa, 36, a irmã dela, Naloana Lima, 37 e Martinha Soares, 44, o grupo musical atua desde 2011, e busca juntar a sonoridade da música regional brasileira com temas das periferias de São Paulo. Elas se apresentam nesta sexta-feira (13), no Sesc Campo Limpo, às 20h.
O trio lança Quebra Quebranto, disco com canções que tratam de temas como o protagonismo das mulheres, e a situação da população negra e indígena no país. Ao longo do ano, elas fizeram apresentações para conseguir custear os gastos do novo disco.
Com participações especiais de Chico Cesar, Ilu Oba de Min, Dani Nega, Marcelo Pretto e da moçambicana Lenna Bahule, Naloana lembra as dificuldades de produzir o CD. “A gente não tinha R$ 1 para lançar o disco. Então, convidamos todo mundo na camaradagem”, completa.
André Ricardo (Horoya), Rafael Franco (Digeridoos), Sandro Bueno (Gaita de Fole) e os pífanos de Tanaka do Pife são outros músicos convidados.
Para reduzir esses custos, o trabalho foi feito em apenas dois dias. Elas tiveram apoio nos arranjos de Chico Cesar e contribuição de Lenna Bahule na composição da faixa Santa Luzia. Ela contribuiu no trecho de ‘Hine Ha Muka’, canto popular de Moçambique, na África. “Tem a mão de muita gente”, diz Naloana.
“O conteúdo das faixas trata do cotidiano urbano, como as mulheres negras, o genocídio da juventude preta, ou da feira. Cantamos o ambiente periférico que a gente vive, mas que não é só zona sul, mas de outras periferias”, afirma Naruna. “A gente traz nossas referências enquanto periferia”.
As integrantes se apresentaram pela primeira vez durante a produção do espetáculo “Hospital da Gente”, com texto de Marcelino Freire. Elas relembram que usavam as músicas da peça nas divulgações.
Com canções que sobraram desse evento, elas começaram a experimentar e fizeram o primeiro show em 2011.
Para Naruna, o grupo nasceu da necessidade de pesquisar o que é a mulher brasileira ancestral, o mote do espetáculo em que estavam envolvidas. “A pesquisa trouxe as canções das cantadeiras, aí depois essa ideia cresceu, e assumimos como uma pesquisa musical”, resume. “A gente começou a experimentar as músicas dentro do teatro”, acrescenta Martinha.
Em 2012, o primeiro álbum foi lançado, o Girandêra, com as canções criadas dentro do processo teatral. A maior parte delas, compostas por Naruna. Desde então, se assumiram oficialmente como um grupo musical.
O trabalho do trio é rodeado por temas que atravessam o universo dos moradores das periferias. Um dos exemplos é a música ‘Enchente’, presente no primeiro disco. Composta para o espetáculo, ela foi escrita com base na vivência das pessoas que vivem nos arredores do Clariô, que há anos enfrentam enchentes em suas casas.
Cada um com seu esforço
Tem a praia que merece!
Ai, ai, ai ninguém se mexe
Ai, ai, ai ninguém merece!
E a água desceu
Mas a lama ficou
Ai meu Deus, ai meu Deus
Olha o estrago que sobrou!
Mas agente lavou
E queimou o que perdeu
E o governo, o governo
Deu cobertor e esqueceu
Mas o dia amanheceu e de novo aconteceu
Ma o dia amanheceu e de novo aconteceu
O nome Clarianas veio de uma adaptação de Clariô, nome do grupo teatral que elas compõem. “Tem gente que pergunta se é por causa da [cantora] Clara Nunes”, comentam. “Um amigo nosso disse que podia ser por causa da nossa cor também, pois etimologicamente, ‘ana’ significa ‘não clara’. Achamos que pode ser isso também”, diz Naruna.
FALTA GRANA
Moradoras de Taboão da Serra, o grupo avalia que no país faltam políticas públicas de incentivo à cultura, sobretudo a quem vive nas periferias. “Aqui em Taboão, a gente nunca teve fomento. Não tem política pública. Uma vez, enquanto movimento de cultura, a gente conseguiu que 1% da verba viesse à cultura, mas isso nunca veio para os grupos”, critica Martinha.
Naloana lembra a importância da lei de fomento à periferia, criada na capital e sancionada em julho de 2016, para a produção artística nas margens da cidade. “Esse dinheiro, chega minimamente para os nossos amigos, mas os editais são poucos, são migalhas. A gente tem que pensar em outros meios de sobrevivência”, comenta.
Na capital paulista, o Movimento Cultural das Periferias articula, desde 2013, a descentralização da verba da secretaria de Cultura. Entre as iniciativas, houve encontro com vereadores, debates em comissões parlamentares e participações em encontros para discutir o tema. No primeiro ano da lei, a cidade disponibilizou R$ 9 milhões para cerca de 30 coletivos.
Naruna comenta que, apesar de importantes, as políticas públicas de cultura nunca foram estruturadas a nível nacional. “Enquanto artistas, nunca tivemos nada ideal. Os projetos federais fazem falta para cidades como a nossa, que não tem iniciativas nesse sentido. Nunca tivemos nada garantido”, completa.
Ela se refere a cortes, como anunciado em setembro deste ano, em que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) apresentou projeto de lei que prevê, em 2020, uma diminuição de quase 43% do orçamento do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) e o enfraquecimento da Ancine (Agência Nacional do Cinema), a principal fonte de fomento de produções audiovisuais no país.
A GENTE SEGUE RESISTINDO
O momento político atual é outra preocupação das Clarianas. “Tem espaços sendo censurados. Isso é horrível e nunca vamos defender algo assim. A resistência cria polos onde surgem diálogos preciosos, e por conta do contexto, acho que nosso disco fala dessas questões todas”, pontua Naruna.
“Acho que dialogar com o que acontece é uma das tecnologias das periferias. Nós vamos encontrar um modo de nos mantermos vivos, ‘fugindo da bala’, ‘fazendo gato’ e seguindo vivo”.
Para Naloana, existem abismos sociais que não permitem condições mais humanas a quem mora na periferia. “Há uma distância entre o ‘feminismo branco’ e de quem está todo dia na labuta”, exemplifica. “Acredito que os ataques aos artistas está vindo por conta da nossa potência. Estamos ‘saindo do armário’, usando cabelo black power”.
“As fragilidades da sociedade estão do outro lado da ponte, porque aqui na periferia, a gente está com o conteúdo e com o futuro”.
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