Cria do Ibura, quebrada de Recife, Tassia Seabra fala sobre a percepção das periferias na França e o apagamento histórico sobre o papel do país na escravidão
Por: Tassia Seabra
Opinião
Publicado em 24.08.2022 | 16:00 | Alterado em 24.08.2022 | 16:33
Fui convidada para participar de uma turnê cultural e política na França com mais um artista e um produtor cultural com duração de 25 dias. Ao ser conectada pelo coordenador e idealizador do projeto, eles me informaram que passaríamos por diversas cidades conectando artistas, produtores, políticos, participando de rodas de diálogos. Duas semanas seriam em atividades pelas periferias de Paris.
“Oi ? periferia de Paris? Mas gente… e Paris tem periferia?” Foi a primeira coisa que pensei.
O “Connexions Périphériques” fez o sentido inverso do roteiro turístico mais famoso do mundo e, sim, Paris tem periferias e, igual ao Brasil, elas são maioritariamente ocupadas pela população negra – que é imensa na França devido ao processo de migração, que se intensificou no período chamado de “descolonização” em diversos países africanos, que haviam sido invadidos por europeus.
A maioria desses imigrantes ocupam cargos de setores que demandam mão-de-obra braçal tradicionalmente não ocupados pelos franceses.
Sempre que chegávamos na pauta da escravidão em alguma atividade, para justificar como ela é a génese de todas as mazelas da sociedade brasileira e também responsável pelo surgimento das favelas pós-abolição (pois era uma grande curiosidade da parte deles), algum francês dizia: “Aqui a gente não escravizou”.
Oi? Pode até parecer impressão minha, mas eu percebia um “orgulho” por não terem escravizado em território francês, mas esse pensamento ao meu ver é algo que já está inserido no imaginário coletivo da população francesa e deve ter sido aprendido na escola, pois ouvi essa justificativa demasiadamente.
“Mas qual é a diferença? Por que não consigo entender o que é pior: ser escravizado em seu território ou no do seu colonizador.”
A França foi um dos maiores controladores do tráfico de escravos e responsável pelo envio de milhares de negros a América (Novo Mundo).
Porém, diferente do Brasil já é possível encontrar muito negros ocupando cargos importantes e influenciando a cultura e a política francesa.
Mesmo em bairros periféricos, que na estrutura brasileira seriam facilmente chamados de bairros de classe média, é muito comum encontrar negros dirigindo um carro bom – sempre que eu falava isso para algum francês que ficava emocionada de ver tanto negro dirigindo uma BMW, eles não entendiam o motivo e achavam engraçado.
Tem coisas que não dá para explicar e só quem é afro-brasileiro vai entender do que eu estou falando. É sobre pertencimento! Sentar na mesa de um restaurante mais ou menos caro ou caríssimo e não ser o único negro ocupando aquele lugar é uma sensação que todo negro deve vivenciar.
Como diz um velho amigo meu: “Somos uma estagiária nessa sociedade, quando Portugal estava invadindo nossas terras, na Europa estava acontecendo Revolução Francesa, então calma, bixa, um dia vai dar certo!” É uma luta que ainda estamos engatinhando, mas, com toda certeza, as próximas gerações dos negros brasileiros não só estarão dirigindo várias BMWs, como também estarão a frente dos espaços de tomadas de decisões, sem ser uma exceção.
Cria do Ibura, periferia de Recife, é produtora cultural e comunicadora social, mãe de Yago e Eva. CEO da Agência Seabra, Co- Fundadora do Coletivo Ibura Mais Cultura e Coordenadora da Frente Nacional das Mulheres no Funk.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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