Léu Britto/ Agência Mural
Por: Jacqueline Maria da Silva
Notícia
Publicado em 25.03.2025 | 20:08 | Alterado em 26.03.2025 | 9:02
Banheiro, cozinha, quarto e pequenas janelas com uma vista do quintal para águas da Represa Billings. Uma embarcação de 40 metros quadrados, construída em madeira e com paredes externas azuis, foi o lar de Vanderlea Rochumback Dias, 57, até os sete anos, na região pós-balsa de São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo.
“Meus avós por parte de mãe moravam no barco-casa. Meu pai casou com a minha mãe e acabou fazendo um também. Igual um caracol que leva a casa nas costas”, brinca.
Modelo de embarcação onde Vanderlea morou quando criança @Magno Borges/ Agência Mural
Vez ou outra, a família passava uma temporada em outros locais da represa, mas a região do Riacho Grande, trecho de São Bernardo banhado pela Billings, era seu porto seguro.
Assim, Vanderlea cresceu em um ambiente onde o único movimento de veículos era o da balsa, os únicos vizinhos eram os avós e as companheiras de travessuras, suas irmãs e a tia, cinco anos mais velha.
“A nossa brincadeira era ficar na proa, cada uma no seu barco, ‘na sua casa’, uma jogando aguapé na outra.”
Na infância, o único movimento de veículos era o da balsa @Léu Britto/ Agência Mural
Com o tempo, a brincadeira de morar nas águas chegou ao fim. A família decidiu que era a hora de “lançar âncora” e desembarcar em terra firme.
“A gente começou a estudar e veio a necessidade de ficar em um lugar, um ponto fixo”, lembra. Mudaram-se para um terreno nas margens da represa, onde Vanderlea vive até hoje, em um ponto de encontro da comunidade.
A diversão de fugir do barco do pai para pescar – que tirava o sono da mãe – tornou-se profissão: pescadora. Com o ofício, ganhou prêmios, como de menor tilápia pescada, e foi à Itália representar as mulheres pescadoras na feira de alimentos Slow Food, uma organização que promove alimentos locais e a culinária tradicional.
‘Vivo da represa desde de que estava na barriga da minha mãe’, ressalta comandante @Léu Britto/ Agência Mural
Foi no cotidiano da pesca que conheceu Orlando Feliciano, seu companheiro de trabalho e de vida, com quem se casou aos 16 anos. Com apoio dele, se dedicou ao ecoturismo na Billings e tornou-se guia de pesca esportiva, mestra fluvial e comandante de embarcação náutica.
“Tudo o que eu faço é relacionado à represa. É um amor puro. Recebo convites de pessoas falando: ‘vamos para tal lugar? Lá também tem água!’ E eu respondo: ‘Ok, mas meu amor é por essas águas da Billings’.”
Apesar de seu apego à represa, que em 2025 completa 100 anos, ela se aventurou fora dela. Já desbravou rios da Amazônia por 12 dias para levar lampiões a comunidades ribeirinhas, por meio do projeto social Litro de Luz.
Na Billings, há 16 anos, Vanderlea presta serviços a órgão públicos, como a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), coletando amostras de água e peixes para avaliação; e a Comgás (Companhia de Gás de São Paulo), realizando ultrassonografias de dutos de gás; e à Prefeitura de São Paulo, participando da implantação da Usina Fotovoltaica Araucária, em Pedreira, na zona sul da capital.
Vista aérea do Billings Tour, empresa de ecoturismo fundada por Vanderlea @Léu Britto/ Agência Mural
E foi no dia de inauguração da usina que recebeu um convite do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB) para ser a primeira mulher comandante do transporte hidroviário da cidade entre os bairros de Pedreira e Cantinho do Céu.
“Eles falaram que estavam buscando uma mulher para comandar. Respondi: ‘Pode beliscar, que eu sou de carne e osso e eu tô aqui há mais de 50 anos!’ O desafio foi o que me levou a aceitar essa proposta e hoje estou há nove meses como comandante do Aquático SP.”
‘Meus avós moravam no barco; meu pai casou com a minha mãe e quis fazer o mesmo’
Assim como uma travessia de barco, o percurso de Vanderlea não foi nada fácil, principalmente por estar em um universo predominantemente masculino e machista, como ela mesma define. Foram seis anos para obter o documento de pescadora profissional e 11 anos para conquistar a carteira de marinheira.
Em 2017, formou-se comandante náutica na Fatec (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo), em uma turma com 18 homens e apenas uma mulher: ela.
Local Vanlerdea mora e onde funcina a Colônia de Pescadores e a Billings Tour @Léu Britto/ Agência Mural
Vencendo barreiras, passou a trabalhar por melhorias coletivas para a região. Na década de 2000, criou a Billings Tour, empresa de turismo ecológico, trouxe cursos de cerâmica e de marinheiro, balseiro e monitor de turismo para a comunidade, garantindo uma forte renda, especialmente durante o período de desova de peixes, quando a pesca é proibida.
Seu esforço foi focado especialmente nas mulheres, com o objetivo de ajudá-las a se profissionalizar na pesca, obter registro e acessar direitos como auxílio maternidade e seguro desemprego.
“Se você chegasse em uma casa e perguntasse quem trabalhava, respondiam que era o homem. Mas quem montava a rede e limpava o peixe? A mulher! Na época, havia quatro mulheres pescadoras sem documento; hoje, já são 200 cadastradas.”
Preocupada com a preservação da represa, incentivou a adoção de práticas de pesca mais sustentáveis e menos agressivas. Junto com o marido, oficializou a Colônia de Pescadores Orlando Feliciano, ou z17, entre 2009 e 2015. “Ele faleceu em 2012, e os pescadores deram o nome dele à associação, como uma homenagem”, conta, orgulhosa.
Vista aérea do bairro do Riacho Grande, em São Bernardo do Campo @Léu Britto/ Agência Mural
Apesar das conquistas, Vanderlea acredita que ainda há muito a fazer, principalmente no que diz respeito à conscientizar sobre a importância da represa. Uma missão que espera ser continuada pelas netas, a quinta geração de pescadoras da família.
“Vivo da represa desde de que estava na barriga da minha mãe, já no balanço do barco. Nesses meus 57 anos, ter feito estes trabalhos dentro da Billings é muito gratificante. Ter a represa daqui 100 anos para minhas netas é meu sonho.”
Essa reportagem faz parte do especial “Nas Margens da Billings“. Navegue por outras histórias e conheça as pessoas que transformam a represa em lar e fazem da preservação ambiental uma missão de vida.
Repórter da Agência Mural desde 2023 e da rede Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project. Vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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