Fim de domingo, recebo uma mensagem pelo Instagram de um amigo jornalista que também integra a Agência Mural. Era um comentário bem mal-educado feito por uma cliente de um restaurante sobre o bairro que cresci, a Vila Medeiros.
O post me fez rir. Depois me fez sentir raiva. E, depois, me fez refletir. Me lembro até hoje como foi mudar para a Vila Medeiros, bairro que fica na zona norte de São Paulo, quase em Guarulhos. Foi em junho de 2004 e eu tinha 7 anos, quando deixamos o bairro Lauzane Paulista, também na zona norte.
A “casa nova”, como eu e minha irmã chamávamos o novo lar, que na realidade era um apartamento, era o sonho dos meus pais se tornando realidade: dizer adeus ao aluguel e começar a vida em família em um bairro diferente.
Esse novo bairro tinha muitas ladeiras, nossa! Lembro de subir a avenida Nossa Senhora do Loreto devagar todos os dias para ir à escola e depois correr na volta, esperando meu pai para pular os degraus da calçada junto comigo.
Um fato interessante sobre as ladeiras é que, dependendo da parte do bairro que você está, dá para ver uma boa parte da cidade de longe. Tipo estar num andar alto de um prédio, mas sem tirar o pé do térreo.
Assim que mudamos, ouvimos falar de um restaurante que estava começando a ficar famoso: o Mocotó. Naquele ambiente, cheio de coisas penduradas na parede e homenzinhos de amarelo servindo comidas gostosas, aprendi o nome de um prato que seria meu favorito até a vida adulta: o escondidinho (que na época custava cerca de R$ 35, segundo a memória da minha mãe).
Cresci enquanto o restaurante Mocotó ficava cada vez mais famoso, se tornando o principal ponto de referência de onde eu morava. Chamar a Vila Medeiros de “bairro do Mocotó” fazia as pessoas imediatamente saberem do que estávamos falando. Mas claro que para nós, moradores da região, o Mocotó era a ponta do iceberg de histórias legais e curiosas que o bairro têm para oferecer.
Quem não conhece o Pastel da Sueli, com meio metro de comprimento e filas recorrentes na frente do estabelecimento, não viveu o melhor que a Vila Medeiros pode oferecer em salgados gigantes – que não se resumem ao pastel.
Ou a lenda da igreja Nossa Senhora do Loreto, que foi construída em formato de avião não só por ser a padroeira dos aviadores, mas como forma de agradecimento após um fazendeiro ter sobrevivido de um acidente de avião naquele local, quando tudo ainda era mato.
Outra figura que poucos conhecem é Seu Josa, o primeiro funcionário do restaurante Mocotó (quando ainda era uma casa de iguarias), que sempre estava na porta do local quando eu passava para ir à escola. “Bom dia Seu Josa”, na ida e “boa tarde seu Josa”, na volta.
Quando já cursava jornalismo na faculdade, decidi entrevistá-lo para a matéria de “Introdução ao Jornalismo”. Me contou as histórias mais doidas sobre o início do restaurante e de sua vida em São Paulo. Quando mostrei o rascunho do texto para o professor, ele achou que o personagem era “muito simples” e me pediu para trocar. Fiquei decepcionada, mas fui em busca de alguém que ainda fosse da Vila Medeiros.
Foi quando lembrei do George Arias, um lutador de boxe peso-pesado que desafiou o Maguila ao vivo no programa do Ratinho nos anos 1990. Era morador do bairro e conhecido pelos vizinhos, inclusive dando palestras nas escolas sobre a importância do esporte – foi assim que o conheci.
Falei com ele pelo Facebook e ele foi super receptivo: me recebeu em sua casa e virou meu personagem para o trabalho da faculdade. Anos mais tarde, contei a história da esposa dele em reportagem publicada no blog Mural, em parceria com a Folha, como a primeira mulher treinadora de um lutador peso-pesado no Brasil.
Tirei 10 com a história do boxeador, mas comemorei a nota com Seu Josa. Explico: todo dia eu passava na frente do restaurante e ele me perguntava sobre o trabalho da faculdade. Não tive coragem de contar que tinha sido barrado, então omiti essa parte. Quando recebi a nota, cheguei no Mocotó de manhã e gritei “Seu Josa, tirei nota máxima!”. Ele deu um berro, largou a vassoura e foi me dar um abraço. E todo mundo ficou feliz.
Lembrei de todas essas histórias ao ler o comentário da Sandra, postado no Instagram do Rodrigo Mocotó, chef responsável pelo restaurante e filho do fundador, Manoel.
Que os próximos visitantes da Vila Medeiros e do Mocotó tenham um olhar mais cuidadoso e sem preconceitos sobre o distrito que abriga mais de 128 mil pessoas e vai muito além de uma “paisagem feia” com um restaurante famoso.