Bianca Sales/Agência Mural
Por: Bianca Silva Sales
Notícia
Publicado em 02.09.2025 | 8:40 | Alterado em 05.09.2025 | 9:52
A primeira vez que a escritora Maria Nilda de Carvalho Mota, 46, recebeu o convite para ter um livro publicado por uma editora causou um sentimento dividido. Em 2006, ela escreveu “De passagem mas não a passeio”, que reúne vivências enquanto mulher negra e periférica.
A publicação trouxe felicidade pela realização, mas a perda de autonomia incomodou. “Antes o livro era meu, podia dar para quem quisesse, podia vender ao preço que bem entendesse, mas na editora tinha que comprar meu próprio livro e não tinha condições financeiras para isso”, relembra.
“Se meu povo não vai ter acesso porque vou publicar em outros lugares?”, lamenta.
Com esse sentimento e indignação, Dinha contou com o apoio de outras mulheres, membros da Posse Poder e Revolução, para fundar em 2013 a ‘Me Parió Revolução’, para fomentar o protagonismo literário de mulheres e impulsionar o acesso à leitura nas periferias.

Dentre as ações do coletivo está a distribuição de livros do selo de forma gratuita no bairro @Arquivo Me Parió
“Nas publicações o que domina são os homens, na literatura brasileira e mundial em geral, a gente tem um domínio masculino. Nós queremos que as autoras tenham protagonismo sobre suas obras e é algo que não é visto ”, comenta Maria, mais conhecida como Dinha.
Escritora e pós-doutora em Literatura e Sociedade pela USP, ela é moradora do Parque Bristol, Ipiranga, na zona sul de São Paulo. O nome da editora é uma analogia à gestação. “Nós não parimos só crianças, mas a revolução através dos nossos livros”.
Em mais de 12 anos de trajetória, o selo conta com nove integrantes e mais de 30 publicações incluindo referências na literatura negra periférica nacional, como textos inéditos de Carolina Maria de Jesus com o livro “Onde está a felicidade”, e autoras como Cidinha da Silva e Cristiane Sobral.

Alguns dos livros publicados pela Me Parió @Bianca Sales/Agência Mural
Mas o objetivo é ir além, e trazer novas escritoras que vivem no próprio território. “Nossa alegria é quando somos reconhecidas entre as mulheres do bairro, que querem saber como publicar um livro sobre sua história ou na escola como ‘a tia que é escritora’, mostra que estamos onde devemos estar”, diz.
Para promover a publicação dos livros das autoras do território sem custos adicionais a elas, o selo atua por meio da captação de editais, fomentos à cultura, participação em feiras literárias e eventos, além de campanhas de arrecadação.
“Nenhuma de nós, se mantém da Me Parió, todas temos outras atividades que nos remuneram realmente, por exemplo, faço revisão de texto, edito, dou aula para professores”, conta Dinha.
Nascida na cidade de Milagres (CE), mais de 500km da capital do estado, Dinha, veio para São Paulo, ainda bebê com pais e irmãos.
Chegou na capital paulista e viveu durante parte da infância na favela ‘Buraco do Sapo’, no Jardim Miriam, zona sul da cidade. Logo aos 6 anos, se mudou para o Parque Bristol, território que vive há mais de 40 anos.
Desde cedo a escrita foi sinônimo de refúgio diante das dificuldades vivenciadas por ela e pela família.

Escritoras do selo literário Me Parió Revolução reivindicam participação na FLIP @Bianca Sales/Agência Mural
Aos 12 anos, ganhou um diário, entretanto, detalhar segredos e angústias nas páginas não era uma tarefa fácil. Sendo a mais nova entre sete irmãos, em uma casa pequena de um único cômodo, ela utilizava cadernos comuns – sem o cadeado habitual de diários – para escrever, o que garantia pouca ou nenhuma privacidade em suas confidências.
Diante disso, a adolescente criou uma técnica como solução para o problema: “trancar as palavras”, utilizando metáforas.
“Eu falava outras coisas, sabia o que estava dizendo, mas as pessoas não. Foi aí que comecei a escrever poesia sem querer. Migrei sem querer do diário para poesia”, relembra.
No início da vida adulta, Dinha co-fundou o coletivo ‘Poder e Revolução’, no Jardim São Savério, que nasceu no conceito das posses do movimento hip-hop. Foi lá que a jovem aprendeu a produzir fanzines sobre si, o território e o que observava da sociedade.

O selo literário realiza eventos com foco na participação de mulheres negras @Arquivo Me Parió
Nesse período, cursava Letras na Universidade de São Paulo, e a partir da coletânea de zines, a autora consolidou o primeiro livro, publicado de forma independente, em 2006, o “De passagem mas não a passeio”
Atualmente, a autora soma 10 livros publicados pela Me Parió Revolução, o mais recente lançado este em julho, “Dominó de Ossos”, que traz em dez contos um paralelo entre tragédia e comédia vivenciados por uma menina anônima.
“A literatura é minha forma de não andar sozinha, de carregar e ser carregada por outras mulheres”, comenta emocionada.
Para ampliar o alcance, o selo disponibiliza de forma gratuita à comunidade no site da editora os livros já publicados pelas autoras em pdf.
Há ainda ações como o “Poesia em Casa”, em que as integrantes vão de casa em casa entregar os livros físicos e conversar sobre as obras, e o projeto “Litera Feira”, onde o selo distribui livros na feira livre em frente ao AMA Parque Bristol, além dos saraus, aulas e palestras realizadas nas escolas. Desses movimentos vieram outras autoras.

Dinha e Jaiane no lançamento dos livros _Dominó de Ossos_ e _Dormindo com Ratos_ que aconteceu em julho deste ano
Moradora do Parque Colonial, em Interlagos, a gestora cultural, Jaiane Conceição, 36, conta que escrever sempre fez parte da sua vida, mas publicar um livro parecia uma realidade distante. Até conhecer Dinha, em 2020.
“Não me via como escritora, mas a “influenciaDinha” disse que não descansaria até que publicasse. Todas as meninas me incentivaram e criei coragem para recentemente lançar meu livro o ‘Dormindo com Ratos’”, comenta a escritora.
Assim como ela, a produtora, multiartista e escritora Adriana Santos, 27, cria do Parque Bristol, encontrou na Me Parió o espaço de acolhimento enquanto mulher lésbica, periférica e mãe solo.
“Era uma mãe sozinha, sem entender nada, sem rede de apoio, sem outras mães para trocar um papo. Desde o primeiro dia essas mulheres me pegaram no colo, acolheram minha história e meu filho e me trouxeram pra perto”, lembra Adriana, mais conhecida como ‘Dri Reverso’.

Adriana Santos, a Dri Reverso, com sua obra “Eu não sei nadar”, lançada em 2023 @Bianca Sales/Agência Mural
No início, Adriana participava somente das reuniões. Já na época da pandemia foi ganhando mais confiança para conduzir os saraus em live organizados pelo selo. Em 2023, publicou o primeiro livro “Eu não sei nadar”, que reúne poemas que misturam vivências e sentimentos.
“Foi um livro doloroso, até hoje não tenho muito carinho. É difícil colocar para o mundo nossas vulnerabilidades. Mas é um livro importante, que se conecta muito com a juventude, e queremos ter esse espaço de troca com eles também!”, diz a escritora.
Glaucia Dantas, 42, empreendedora, estudante e escritora integrante da Me Parió, salienta a importância da presença do selo no território do “fundão do Ipiranga” como uma forma de estimular outras mulheres a explorarem seu potencial.
“Nós mulheres pretas periféricas somos o tempo inteiro atravessadas por tudo. Parir a sua revolução através da escrita com o cotidiano maluco que cada uma tem, é contrariar as estatísticas. Isso é mostrar para outras mulheres, você pode”, conta emocionada.
A escritora já conta com um livro de poesia narrada, “A Colheita”, publicado no selo em 2023 e traduzido para o espanhol, além de audiobook para pessoas com deficiência e baixa visão. “A Me Parió sempre quer incluir, seja nossos filhos, as crianças no sarau, as mulheres do bairro. É dar esse espaço.”
Internacionalista e jornalista em formação. Mulher preta, filha de nordestinos. Cria da Zona Sul (Pq.Bristol) que ama praia, música e gatos. Aquariana faladeira. Correspondente do Sacomã desde 2022.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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